quarta-feira, 2 de março de 2011

Revista Artigo Uma vez mais da garantia da ordem pública como fundamento de decretação da prisão preventiva

1 – Introdução

O ainda vigente Código de Processo Penal Brasileiro, implantado em pleno "Estado Novo", teve como modelo o Código de Processo Penal Italiano de 1930, gerado pelo regime fascista e que seguia os postulados da Escola Técnico-Jurídica. Em conseqüência disto, o CPP apresenta enfoque marcadamente autoritário, que pode ser constatado em várias de suas disposições, notadamente nas referentes às prisões provisórias, cuja aplicação automática dispensava, em certas hipóteses, qualquer justificativa assentada em razão de cautela.
Com o advento da Constituição da República em 1988, a proclamação de interesse oposto ao autoritarismo e a consagração de garantias a favor da liberdade individual, cujo fundamento está na dignidade da pessoa humana e tem como um de seus vetores o princípio da presunção de inocência, esculpido no artigo 5º, LVII, da CF e nos Pactos Internacionais dos quais o Brasil é signatário, impôs-se efetiva mudança na mentalidade dos operadores do Direito. Agora, a regra é a liberdade, a prisão é uma exceção, cujo fundamento decorre de sentença penal condenatória transitada em julgado, ou de uma razão de cautela que comprove a necessidade de sua decretação no curso do inquérito ou do processo criminal.
Reconhece-se então, a necessidade de uma releitura de várias normas dispostas no antigo Código de Processo Penal Brasileiro, para adequá-las ao atual paradigma constitucional.
Neste contexto, é que surge a necessidade de (re)discutir-se o conceito de "garantia da ordem pública", para delimitar sua aplicação como fundamento de um decreto de prisão preventiva, pois, o seu conceito que sempre foi de difícil interpretação, dando margem a arbitrariedades, esbarra em postulados constitucionais, devendo-se verificar até mesmo sua natureza jurídica, para saber se a luz destes postulados pode ser considerada uma verdadeira razão de cautela.

2 – Natureza jurídica da "garantia da ordem pública".

Entre os juristas brasileiros que se insurgiram contra a prisão preventiva com fundamento na "garantia da ordem pública", destaca-se Gomes Filho (1991), que demonstrou-nos não possuir a idéia de "ordem pública" caráter instrumental relacionado com os meios e fins do processo, veja-se:
À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em "exemplaridade", no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes; uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras, relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do acusado. (GOMES FILHO, 1991, p. 67-68)
Delmanto Júnior (1998), comentando a decretação da prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, considera
ser indisfarçável que nesses termos a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental – de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado – ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de instrumento de justiça sumária, vingança social etc. (DELMANTO JUNIOR, 1998, p.156)
Assim, dúvida não resta que falta à prisão preventiva decretada com base na "garantia da ordem pública" caráter instrumental inerente a toda medida cautelar, pois, esta visa assegurar os meios e os fins do processo, ao passo que na "ordem pública" não se vislumbra este caráter, não possuindo tal expressão limites rígidos para a sua definição, dando azo ao arbítrio e a casuísmos na restrição da liberdade.
O apelo à forma genérica e retórica da "garantia da ordem pública" representa a possibilidade de superação dos limites impostos pelo princípio da legalidade estrita, propiciando um amplo poder discricionário ao juiz com "uma destinação bastante clara: a de fazer prevalecer o interesse da repressão em detrimento dos direitos e garantias individuais". (GOMES FILHO, 1991, p. 66)

3 – Interpretações dadas à "garantia da ordem pública".

A "garantia da ordem pública" será chamada a socorrer diversas interpretações a ela dada, com os mais diversos fins, havendo principalmente na jurisprudência, enorme casuísmo no trato da matéria, conduzindo a interpretações as mais variadas, o que gera uma insuportável insegurança jurídica no trato de tema tão importante, qual seja, a privação da liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Do resgate das expressões utilizadas para dar significado à "garantia da ordem pública", constata-se que as mesmas são em verdade fórmulas vazias e sem conteúdo processual, como por exemplo, a ‘potencialidade lesiva do crime’ ou ‘gravidade do delito’, a ‘preservação da credibilidade na Justiça’, a ‘periculosidade do agente’ ou ‘reiteração criminosa’, o ‘clamor público’, entre outras presentes na jurisprudência [1].
A ‘potencialidade lesiva’ ou ‘gravidade do delito’, ao nosso ver, não poderá servir de base para a manutenção da prisão de alguém, afinal, isto por si só não enseja a custódia do agente, uma vez que não mais existe prisão preventiva obrigatória para crimes graves na legislação brasileira, devendo-se demonstrar no caso concreto, quais elementos indicam o periculum libertatis. Veja-se a orientação do Supremo Tribunal Federal:
"A gravidade do crime imputado ao réu, por si só, não é motivo suficiente para a prisão preventiva". STF, HC. nº 67.850-5 [2].
O argumento de que a necessidade de ‘preservação da credibilidade na justiça’ pode acarretar a prisão para "garantia da ordem pública", é dos que mais atenta contra os princípios processuais penais cautelares, pois, "a prisão preventiva não pode ser instrumento da ação judicial para servir a essa pobreza cultural que exige cadeia imediatamente para todo e qualquer acusado..." [3]. A via da ‘exemplaridade’ e da ‘satisfação do sentimento de justiça’, não são fundamentações coerentes para a prisão preventiva, pois, tratam-se de aplicação de uma justiça sumária, que viola o devido processo legal e a presunção de não-culpabilidade.
O argumento relativo à ‘periculosidade do agente’, que visa fundamentar a prisão preventiva para que o agente não ‘volte a delinqüir’, não ‘prossiga na reiteração criminosa’ ou não ‘consume um crime tentado’, acarreta verdadeira presunção de culpabilidade, conforme Delmanto Junior
Sem dúvida, não há como negar que a decretação de prisão preventiva com o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado. (...) Com a referida presunção de reiteração, restariam violadas, portanto, as garantias constitucionais da desconsideração prévia de culpabilidade (Constituição da República, art. 5º, LVII) e da presunção de inocência (Constituição da República, art. 5º, § 2º, c/c os arts. 14, 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e 8º, 2, 1ª parte, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). (DELMANTO JUNIOR, 1998, p. 152-153)
Afirma ainda o autor que neste caso, a prisão preventiva perde seu caráter cautelar de tutela da efetividade do processo transformando-se em meio de prevenção especial e geral, fins exclusivos da sanção penal, configurando verdadeira punição antecipada. (DELMANTO JUNIOR, 1998, p. 165)
No mesmo sentido é a opinião de Almeida (2003) e Lopes Júnior (2005) ao considerar que manter "uma pessoa presa em nome da ordem pública, diante da reiteração de delitos e o risco de novas práticas, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal" (LOPES JÚNIOR, 2005, p. 203).
Também é amplamente contestado talvez seja esta a fórmula mais criticada, ventilar que o ‘clamor público’ pode fundamentar a prisão preventiva. Isto, pois, ‘ordem pública’ e ‘clamor público’ são coisas distintas e este não implica necessariamente naquele. Ademais, na maioria dos casos concretos, não se vislumbra qualquer alteração excepcional no bojo social, que não seja a decorrente de qualquer delito que se cometa. Conforme Lopes Júnior,
é inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir papel vingativo. (LOPES JUNIOR, 2005, p. 206)

4 - Conclusões

1. A "garantia da ordem pública" não possui caráter cautelar propriamente dito, tendo na verdade finalidades que ora são meta processuais, ora são exclusivas das penas.
2. As interpretações dadas à expressão "garantia da ordem pública" são violadoras do princípio da presunção de inocência, pois, ou desconsideram a avaliação da necessidade da medida, ou se fundam em presunções e antecipações do juízo de culpabilidade.
3. Devemos na interpretação e aplicação das medidas cautelares, nos libertarmos dos resquícios do autoritarismo e assimilarmos a nova orientação constitucional, lembrando-nos sempre que, dentro deste novo paradigma, os fins nunca podem justificar os meios.
4. PORPOSIÇÃO: Não sendo a "garantia da ordem pública" uma Razão de Cautela propriamente dita, a mesma não deve ser suficiente à decretação da prisão preventiva, só podendo ser decretada a prisão em um caso concreto, quando existir um fundamento de natureza realmente cautelar, que demonstre risco à efetividade do processo.


SILVA, Bruno César Gonçalves da. Uma vez mais: da garantia da ordem pública como fundamento de decretação da prisão preventiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 730, 5 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6965>. Acesso em: 1 mar. 2011.

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