domingo, 27 de março de 2011

DO DIREITO PATRIMONIAL - DO USUFRUTO E DA ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DE FILHOS MENORES

Os filhos, enquanto menores e não emancipados, vêem-se submetidos ao poder familiar1 que é objeto de específica regulamentação inscrita nos artigos 1.630 a 1.638 do Código Civil de 2002, de onde se extrai que durante o casamento e a união estável a ambos os pais compete o seu exercício, respeitada, é certo, a delimitação que se acha inscrita no bojo da aludida norma substantiva2. O poder familiar, consoante se extrai do conjunto normativo em vigor, constitui um munus público que se acha orientado mais pela fixação de deveres para os pais do que propriamente para os filhos, embora estejam estes igualmente vinculados a certos e determinados encargos relevantes. Massimo Bianca, em conceito reproduzido por Paulo Luiz Netto Lôbo, consigna que “O poder familiar (potestà genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios funcionalizados aos cuidados e educação do menor e, ainda, os poderes de representação do filho e de gestão de seus interesses”3.

Trata-se, portanto, de direito-função que recebe regulamentação específica e que se reveste de uma condição peculiar dotada de grande relevância para a regulação da relação entre pais e filhos. E isto é confirmado pelo conjunto de atribuições que a ele se referem e que lhe dão substância, inscritas estas no rol de competências que é aos pais atribuído pela norma e que compreende dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e, ainda, exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Oportuno rememorar, no contexto ora enfocado, que essa regulamentação específica relativa ao poder familiar encontra-se contida em capítulo que compõe o Subtítulo II, do Título I, do Direito de Família (Livro IV), onde, ao referir-se ao direito pessoal, inscreve disposições que se voltam a disciplinar as relações de parentesco, tratando não só do poder familiar, mas, ainda, da filiação (artigos 1.596/1.606), do reconhecimento de filhos (artigos 1.607/1.617) e da adoção (artigos 1.618/1.629).

O PODER FAMILIAR NA ESFERA PATRIMONIAL

Postas tais considerações preliminares a respeito do poder familiar e de seu conteúdo, cumpre observar que mais adiante constam no Código Civil, já na esfera do direito patrimonial (Título II do Livro IV), outras disposições voltadas a regulamentar a relação entre pais e filhos mas, nesse ponto, ao lado do regime de bens, dos alimentos e do bem de família, já se cuida e dá atenção em subtítulo específico a questões de cunho tipicamente patrimonial voltadas a regular, de modo particularizado, o usufruto e administração de bens de filhos menores (artigos 1.689/1.693) que, embora decorrente e relacionado ao poder familiar, é disciplinado de forma destacada.
Com esse escopo específico, estatui o artigo 1.689 do Código Civil de 2002 que o pai e a mãe, enquanto estiverem no exercício do poder familiar, são usufrutuários4 e têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade. Fundamentadas estão a prerrogativa e o encargo conferidos no fato de não serem os filhos, enquanto detentores dessa condição de menoridade, capacitados ao desempenho pleno de atos da vida civil5, exigindo ou a representação ou a assistência de seus genitores.
Ao se conferir esse usufruto aos pais, pelo que se pode perceber, a eles se outorga, em razão da condição econômica dos filhos, uma compensação pelas despesas com a sua criação e educação, embora sejam diretamente responsáveis por isso e não possam, ordinariamente, pretender ou exigir qualquer reembolso com tal fim.
No desempenho da função de administração, conforme estatui o artigo 1.690, aos pais compete em conjunto – e na falta de um deles ao outro com exclusividade – representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los após essa idade e até completarem a maioridade ou, nos moldes previstos em lei, serem emancipados6, sem deixar de rememorar, a respeito, que os pais devem decidir em comum as questões relativas aos filhos e a seus bens. Advindo divergência entre ambos, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para a solução necessária (parágrafo único).
O que se faz, por meio de tais disposições legais, é deferir a ambos os genitores – legalmente e de forma automática – a condição de administradores dos bens dos filhos menores, o que perdura enquanto estiverem os pais no exercício do poder familiar e no desempenho regular das atribuições que dele diretamente resultam, assegurando-lhes, independentemente quaisquer providências formais com esse escopo, o usufruto de tais bens, sem que fiquem, para o desfrute desse direito real de fruição, submetidos à obrigação de prestar caução. Dispensados ficam igualmente, por conseqüência de se ter uma atribuição legal peculiar, da obrigação de prestar contas.
Resulta certo de tais disposições, pois, que sendo detentor de patrimônio próprio o filho menor e não emancipado, os seus pais são autorizados, enquanto estiverem investidos no poder familiar e se não houver disposição contrária imposta por terceiro validamente7, a desfrutar da condição de usufrutuários de tais bens nos moldes previstos nos artigos 1.3948 e 1.4009 do Código Civil, os quais regulam direitos e deveres do usufrutuário, respeitadas, todavia, as normas que ora são objeto de exame e que, de modo específico, acomodam regras a respeito dessa relação peculiar que se estabelece entre pais e filhos.

PROIBIÇÕES LEGAIS IMPOSTAS AOS PAIS

Restrição outra, voltada à proteção do patrimônio que se acha aos pais confiado, é vista no bojo do artigo 1.691 do Código Civil. Estatui-se ali que não é permitido aos pais alienar10, ou mesmo gravar de ônus real11 os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo quando restar caracterizada necessidade ou evidente interesse da prole, o que somente se admitirá mediante a obtenção de prévia autorização do juiz, demandando, portanto, o ingresso no Judiciário com pedido formal devidamente motivado12, ficando os genitores, após a prática do ato autorizado, vinculados ao dever de prestar contas13.
Adite-se, outrossim, que se vier a ser constatado cometimento de ato que desatenda ao que se estipula na disposição referida, ou seja ocorrendo a alienação sem prévia autorização judicial, ou a gravação dos bens com ônus real, ou, ainda, a assunção de encargos exagerados poder-se-á demandar a nulidade por meio de ação própria, estando legitimados para isso, no entanto, apenas os filhos, os herdeiros e o representante legal (artigo 1.691, parágrafo único).

CONFLITO DE INTERESSES

Explicita-se, outrossim, que sempre que no exercício do poder familiar vier a ser constatada divergência entre o interesse dos pais com o do filho, disso resultará impedimento para que exercitem a função de representação ou de assistência, devendo o juiz, a requerimento do filho ou do Ministério Público, nomear curador especial a quem competirá exercer os atos que aos pais competiriam praticar (artigo 1.692).
Oportunas, a respeito, as lições ofertadas por Carlos Roberto Gonçalves14, quando põe em destaque que a alegação de conflito de interesses não exige a prova de que o pai pretenda lesar o filho, bastando, para a caracterização da colidência que estejam – pai e filho – posicionados em situações cujos interesses são aparentemente antagônicos. Exemplifica citando a venda de ascendente a descendente, que depende do consentimento dos demais descendentes15. Ao desejar assim proceder, deve o filho menor estar representado ou assistido por curador especial nomeado especificamente para esse efeito.

BENS EXCLUÍDOS DA ADMINISTRAÇÃO
E USUFRUTO DOS PAIS

Forçoso pôr em destaque e observar, por fim, que nem todos os bens que integram o patrimônio do filho podem ser objeto de usufruto e ficarão submetidos à administração dos pais. A lei, conforme previsão inscrita no artigo 1.693, exclui expressamente dessa condição: I – os bens adquiridos pelo filho havido fora do casamento, antes do reconhecimento16; II – os valores auferidos pelo filho maior de dezesseis anos, no exercício de atividade profissional e os bens com tais recursos adquiridos; III – os bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados, pelos pais; IV – os bens que aos filhos couberem na herança, quando os pais forem excluídos da sucessão.

NOTAS
1 O poder familiar compreende um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. Apresenta o poder familiar as seguintes características: 1. constitui um munus público (poder-dever; direito-função); 2. é irrenunciável; 3. é inalienável ou indisponível; 4. é imprescritível; 5. é incompatível com a tutela; e 6. detém natureza de uma relação de autoridade, criando um vínculo de subordinação entre os genitores e os filhos.

2 Fixa-se um conjunto de direitos e deveres dos pais em relação à pessoa e aos bens dos filhos menores não emancipados, especialmente visando a delimitar o exercício do poder familiar.

3 Direito de Família e o Novo Código Civil, Coordenação Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, 4. ed. rev. atual., Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 148.

4 O usufruto é ó direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade, consoante definição que se oferecia no artigo 713 do Código Civil de 1916 e que se mantém atual no âmbito doutrinário, prestando à sua conceituação. É normatizado pelo Código Civil de 2002 nos artigos 1.390 a 1.411, onde se dispõe sobre disposições gerais, direitos e deveres do usufrutuário e extinção do usufruto.

5 Sílvio de Salvo Venosa, em abordagem sobre o assunto, assevera a respeito com a reconhecida proficiência que “os filhos menores não possuem capacidade de direito para administrar seus bens, que a eles podem advir de várias formas, mormente por doação ou testamento ou por fruto de seu trabalho, Direito Civil – Direito de Família, v. 6, 2. ed., São Paulo, Atlas, 2002, p. 348.

6 A menoridade, conforme prescreve o artigo 5º, caput, do Código Civil, cessa aos dezoito anos completos, quando fica a pessoa, então, habilitada para a prática de todos os atos da vida civil. O parágrafo único dessa mesma disposição estipula que a incapacidade cessa para os menores nas hipóteses que ali se encontram relacionadas, dentre as quais aquela contida no inciso I, expressada da seguinte forma: “pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos”.

7 Esclarece Carlos Roberto Gonçalves (in Direito Civil Brasileiro, VI volume, Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2005,

p. 427) que “... a administração e o usufruto podem ser subtraídos do poder familiar por disposição expressa do doador ou do testador, que podem indicar outro administrador dos bens respectivos”.

8 “Artigo 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.”

9 “Artigo 1.400. O usufrutuário, antes de assumir o usufruto, inventariará, à sua custa, os bens que receber, determinando o estado em que se acham, e dará caução, fidejussória ou real, se lha exigir o dono, de velar-lhes pela conservação, e entregá-los findo o usufruto.”

10 Alienar é transferir para outrem o domínio de coisa ou o gozo de direito que pertence a alguém. Compreende vender, doar ou trocar por outra a coisa ou o direito que se tem.

11 Gravar é onerar a coisa, hipotecá-la, sujeitá-la a encargos ou quaisquer ônus reais.

12 Ementa: Autorização para venda de bem de menor. Exige cumprida demonstração de necessidade ou utilidade para a prole (artigo 386 do Código Civil). Sem a demonstração, indefere-se o pedido. Decisão: Conhecer o recurso e improver. Unânime. (TJDFT – 2ª Câmara Cível – Embargos Infringentes na APC EIC nº 3644596-DF – Acórdão

nº 91300 – Julgamento em 04.09.96 – Relator: Mario Machado – Publicação no DJU de 26.02.97 – p. 2427).

13 Ementa: Civil e Processual Civil – Preliminar – Incompetência absoluta – Ação de prestação de contas – Alienação de bem de menor. Compete ao Juízo de família que autorizou a alienação de bem de menor processar e julgar a respectiva ação de prestação de contas. O Ministério Público acha-se legitimado para exigir prestação de contas do genitor que, autorizado a alienar bem do filho incapaz, deixou de informar o destino dado à quantia recebida. Decisão: Conhecer, rejeitar as preliminares, e, no mérito, negar provimento ao recurso. Unânime. (TJDFT – 4ª Turma Cível – Apelação Cível nº 20000150020889APC-DF – Acórdão

nº 141299 – Julgamento em 07.06.01 – Relator Sérgio Bittencourt – Publicação no DJU de 22.08.01 – p. 66).

14 Op. cit., p. 438.

15 Código Civil – artigo 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

16 Sílvio de Salvo Venosa esclarece que “Quanto aos bens adquiridos pelo filho fora do casamento, antes do reconhecimento, a norma tem nítido caráter moral: pretende-se não transformar o ato de reconhecimento como incentivo à cupidez para o pai reconhecente. Ademais, enquanto não houver reconhecimento, não há poder familiar” (Op. cit. p. 351).

Arthur da Nobrega

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