segunda-feira, 21 de março de 2011

Recurso especial - Teoria e Prática

RECURSO ESPECIAL – TEORIA E PRÁTICA

Dispõe a Constituição Federal, no seu art. 105, III, que compete ao Superior Tribunal de Justiça “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

‘a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal’.”
Apenas em tais hipóteses será cabível o recurso especial, tratando-se, portanto, de matéria taxativamente estabelecida.
Este recurso, além dos dispositivos constitucionais, está também disciplinado na Lei
nº 8.038/90 e no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, além de, eventualmente, ser alvo de súmulas.
É um meio recursal que tem indiscutivelmente natureza política, pois visa “primordialmente à tutela do próprio direito objetivo editado pela União”.1 Cuida exclusivamente de tutelar a “vigência e eficácia da legislação federal infraconstitucional e busca harmonizar a respectiva jurisprudência. Não debate o conjunto probatório. Súmula nº 7, STJ”. (STJ – 6ª Turma – REsp. nº 88.104/SP – Rel. Ministro Vicente Cernicchiaro, Diário da Justiça, Seção I, 17.2.97, p. 2180).
Logo, “questões jurídicas de índole eminentemente constitucional estão afastadas do âmbito de conhecimento do especial”. (STJ – 1ª Turma – REsp. nº 59.256-9/RS – Rel. Ministro Demócrito Reinaldo, 5.4.95), mesmo porque para tais hipóteses o recurso cabível será o extraordinário (art. 102, III, da Constituição Federal).
O recurso especial, a par de servir às partes sucumbentes, tem, em última análise, como escopo tutelar o próprio Direito federal acaso atingido pela decisão guerreada. Ademais, não é cabível em sede deste recurso extremo perquirir-se acerca de matéria fática, devendo ser analisadas apenas as questões de direito já examinadas pelo Juízo a quo, mesmo porque, se assim não o fosse, o recurso se prestaria a uma segunda apelação. Neste sentido, atente-se para a Súmula nº 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.
Observe-se, porém, que na lição de Ada, Scarance e Magalhães Gomes Filho, não se pode excluir “a reapreciação de questões atinentes à disciplina legal da prova e também à qualificação jurídica de fatos assentados no julgamento de recursos ordinários”.2 A esse respeito, o STJ já decidiu que “o erro sobre critérios de apreciação da prova ou errada aplicação de regras de experiência são matérias de direito e, portanto, não excluem a possibilidade de recurso especial” (STJ, RT 725/531).
Este recurso não tem efeito suspensivo, segundo dispõe o art. 27, § 2º, da Lei nº 8.038/90: “os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo”.
Neste sentido, veja-se este julgado do Supremo Tribunal Federal:
“O direito de recorrer em liberdade não se estende ao recurso especial e ao recurso extraordinário, eis que essas modalidades excepcionais de impugnação recursal não se revestem de eficácia suspensiva.” (STF – 1ª Turma – HC nº 72.465-5/SP – Rel. Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça, 24.11.95, p. 40387).
Atente-se, porém, para a lição de Ada Pellegrini Grinover, segundo a qual o art. 27, § 2º, da Lei nº 8.038/90 “visa a regulamentar os recursos de forma genérica, não sendo aplicável, quanto aos efeitos prisionais, à esfera penal”.3
Aliás, não é mesmo possível admitir-se o efeito somente devolutivo do recurso especial (e mesmo do extraordinário) na esfera penal, pois estaríamos contrariando o princípio constitucional da presunção de inocência.
Ora, se o art. 5º, LVII, da Constituição proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é de todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar, independentemente de primariedade e de bons antecedentes. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois, ainda não foi condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco, seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal. Mais estranho se nos afigura ao atentarmos que aquela presunção foi declarada constitucionalmente.
Desta forma, esta prisão provisória anterior a uma decisão transitada em julgado, ditada automaticamente pelo só motivo do recurso não ter efeito suspensivo, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º, LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade (periculum libertatis4).
Resta-nos, então, já que legem habemus, interpretar este dispositivo legal à luz da Constituição Federal, a fim de que possamos entendê-lo ainda como válido, fazendo, porém, uma leitura efetivamente garantidora.
Ora, se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de um acórdão recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento.
Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar de garantir a ordem pública, a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise, a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente estudo).
Se assim o é, fácil é interpretar este art. 27, § 2º, da Lei nº 8.038/90 da seguinte forma e nos seguintes termos: a prisão será uma decorrência do acórdão confirmatório da sentença condenatória sempre que, in casu, seja cabível a prisão preventiva contra o réu. O que definirá se o acusado aguardará preso ou em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos.
Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do duplo grau de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta Magna, o artigo ora analisado não pode ser interpretado literalmente, porém, mais uma vez, em conformidade com aquele Diploma, lendo-o da seguinte forma: não se pode admitir que o recurso especial interposto contra uma decisão de natureza condenatória/penal tenha, tão-somente, efeito devolutivo. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo que a prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da prisão provisória), ainda assim, admitir-se-á o recurso especial, mesmo que não tenha sido preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir.
Observa-se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento provisório (por ser, repita-se, necessário), o não-recolhimento do
acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso especial pela defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento (não pode ser considerado deserto).
Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 27, § 2º, o que seria desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas. Por outro lado, utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a Constituição, procurando adequar o texto legal com o Texto Maior e evitando negar vigência ao dispositivo, mas, antes, admitindo-o válido a partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição.
Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas”.5
Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo interpretativo fosse possível à luz da Constituição. Por outro lado, não entendemos ser o caso de, simplesmente, reconhecer inválida a norma insculpida naquele artigo de lei. A nós nos parece ser possível interpretá-la em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei”.6
Se verdade é que “por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que “uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores”. (Grifo nosso): teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei.7
Portanto, não se pode ler o referido artigo de lei e inferir o que se traduz gramaticalmente desta leitura. A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente.8
Em reforço à tese ora esboçada, ilustra-se dizendo que na exposição de motivos do projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal, afirma-se que “toda prisão antes do trânsito em julgado final somente pode ter o caráter cautelar. A exe­cução ‘antecipada’ não se coaduna com os princípios e garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito”.
Atentando-se, outrossim, para o sistema jurídico e fazendo uma interpretação sistemática do dispositivo9, assinalamos que, posteriormente a ele, surgiu no cenário jurídico brasileiro a Lei nº 8.072/90 (Crimes Hediondos), dispondo que “em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade” (art. 2º, § 2º, com grifo nosso).10
Maximiliano já escreveu que o “Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio”.11
É possível a interposição simultânea dos recursos especial e extraordinário contra acórdão com duplo fundamento (legal e constitucional), excepcionando-se o princípio da unirrecorribilidade recursal, segundo o qual de cada decisão judicial cabe apenas um único recurso. Neste caso, indispensável que o recorrente apresente duas petições distintas, em conformidade com o art. 26 da Lei nº 8.038/90.
Assim, na lição de Ada, Scarance e Magalhães Gomes Filho, é possível a dupla interposição “se houver fundamentos legais e constitucionais que autorizem as duas impugnações”.12
Neste sentido, veja-se esta decisão do STF:
“O recurso extraordinário e o recurso especial são institutos de Direito Processual Constitucional. Trata-se de modalidades excepcionais de impugnação recursal, com domínios temáticos próprios que lhes foram constitucionalmente reservados. Assentando-se, o acórdão do Tribunal inferior, em duplo fundamento, impõe-se à parte interessada o dever de interpor tanto o recurso especial para o STJ (para exame da controvérsia de caráter eminentemente legal) quanto o recurso extraordinário para o STF (para apreciação do litígio de índole essencialmente constitucional), sob pena de, em não se deduzindo qualquer desses recursos, o recorrente sofrer as conseqüências indicadas na Súmula nº 283/STF, motivadas pela existência de fundamento inatacado, apto a dar, à decisão recorrida, condições suficientes para subsistir autonomamente. A circunstância de o STJ haver examinado o mérito da causa, negando provimento ao recurso especial – e, assim, resolvendo a controvérsia de mera legalidade instaurada nessa via excepcional – não prejudica o conhecimento do recurso extraordinário, que, visando à solução de litígio de índole essencialmente constitucional, foi interposto, simultaneamente, pela mesma parte recorrente, contra o acórdão por ela também impugnado em sede recursal especial.” (STF – 2ª Turma – Ag. em Rextr. nº 246.370-1/SC – Rel. p/ Acórdão Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 5.5.2000, p. 34).
Para que seja conhecido o recurso especial, indispensável o prequestionamento, consistente “no prévio tratamento do tema de direito federal pela decisão recorrida”.13
Assim, “o prequestionamento da matéria é pressuposto indispensável ao conhecimento do recurso interposto sob o fundamento da letra a do inciso III do art. 105 da CF”. (STJ – 2ª Turma – REsp. nº 9.402/SP – Rel. Ministro Peçanha Martins, Diário da Justiça, Seção I, 30.9.91).
Na verdade, o prequestionamento nada mais é senão a necessidade de que tenha havido no Juízo recorrido o debate e a decisão sobre a matéria federal objeto do recurso especial, “emitindo juízo de valor sobre o tema”14. Se tal circunstância não ocorreu deverão ser utilizados os embargos declaratórios15 visando a provocar efetivamente a discussão do tema objeto do recurso, pois “em sede de recurso especial não se decide sobre matérias não discutidas e nem julgadas nas instâncias ordinárias”. (STJ – 1ª Turma – REsp. nº 59.256-9/RS – Rel. Ministro Demócrito Reinaldo, 5.4/95), “não bastando, obviamente, sua argüição pela parte durante o processo ou nas razões do recurso ordinário”.16
O prequestionamento é considerado pela doutrina e pela jurisprudência como um verdadeiro requisito de admissibilidade do recurso especial.
Para a interposição deste recurso extremo faz-se necessário, além do prequestionamento, a indicação expressa do dispositivo legal contestado, mesmo porque “a referência genérica à lei federal porventura vulnerada, sem a particularização de qualquer artigo, bem como a falta de indicação de arestos visando a demonstração da dissidência jurisprudencial, torna inviável o recurso especial, dado a ausência de pressupostos básicos a sua admissibilidade, pelas alíneas a e c, do permissivo constitucional (...) Na interposição do recurso especial fundado na letra a do permissivo constitucional é necessária a indicação do dispositivo de lei fe­deral supostamente violado, para a exata compreensão da controvérsia, possibilitando o exame do apelo na instância especial”. (STJ – 5ª Turma – REsp. nº 43.037/SP – Rel. Ministro Cid Flaquer Scartezzini, Diário da Justiça, Seção I, 29.4.96, p. 13427).
O Superior Tribunal de Justiça, excepcionalmente, vem admitindo o chamado prequestionamento implícito, “exigindo apenas que a questão tenha sido posta na instância de origem” (REsp. nº 2.336-MG, RT 659/192). “É chamado de prequestionamento implícito o que reputa uma questão implicitamente apreciada, em razão de expressa apreciação de questão outra, que daquela é decorrente. Um exemplo de prequestionamento implícito consiste na questão da competência do Juiz: se ele julga a questão de mérito, implicitamente reconhece sua competência”, segundo o ensinamento de Bruno Mattos e Silva17 .
É importante ressaltar que somente será admissível o recurso especial se esgotadas as vias recursais ordinárias. A propósito, editou-se a Súmula nº 207 do STJ: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem.”
O prazo para a interposição do recurso vem estabelecido na referida Lei nº 8.038/90, art. 26, ou seja, quinze dias, devendo ser impetrado perante o Presidente do Tribunal recorrido, a quem caberá um primeiro juízo de admissibilidade18, podendo haver a interrupção deste prazo se houver a oposição de embargos declaratórios.
Se o Presidente do Tribunal recorrido denegar o recurso será cabível agravo de instrumento no prazo de cinco dias para o STJ (art. 28 da Lei nº 8.038/90), possibilitando, assim, o reexame deste primeiro juízo de admissibilidade.
O art. 26 da referida lei ordinária estabelece os requisitos gerais da petição de interposição do recurso especial.
O procedimento também vem disciplinado nesta lei.

modelo

Excelentíssimo Senhor Juiz-Presidente do egrégio Tribunal de Justiça do Estado da Bahia


O Procurador-Geral de Justiça do Estado da Bahia, nos autos da Apelação Criminal nº ..........., desta Comarca da Capital, tendo como apelante o Sr. ...............................................................e como apelada a Justiça Pública, com fundamento no art. 105, III, a e c, da Constituição Federal, vem interpor o presente Recurso Especial para o colendo Superior Tribunal de Justiça, pelos motivos adiante deduzidos:
O apelante foi processado como incurso no art. 171, caput, do Código Penal porque no dia 4 de abril do ano de 2001 emitiu um cheque no valor de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, apondo na cártula data posterior àquela em que realmente efetivava a compra no estabelecimento comercial ........................, localizado nesta Capital, na .............................................................
Ao final da instrução processual, o Juiz de Direito julgou procedente a acusação, aplicando ao réu a pena de 1 ano de reclusão (fls. 27/30).
Irresignado, o acusado apelou visando a sua absolvição, por entender que se tratava de um fato, do ponto de vista penal, absolutamente atípico.
A 1ª Câmara Criminal deste Tribunal julgou procedente a apelação interposta, reformando a decisão de 1º grau e absolvendo o réu, sob o argumento de que a conduta do sentenciado se tratava, em verdade, de um mero ilícito civil.
Com a devida vênia, assim decidindo, os eminentes Desembargadores negaram vigência ao texto do art. 171, caput, do Código Penal, como mostraremos a seguir.
Com efeito, a questão do cheque pré-datado, dado como garantia de dívida e não como pagamento à vista, é deveras polêmica, constituindo-se, verdadeiramente, numa vexata quaestio, entendendo muitos que a sua emissão não constitui nenhum ilícito penal.
É induvidoso que para se caracterizar o delito tipificado no art. 171, § 2º, VI, do Código Penal, urge que o título cambial se cubra de todos os requisitos legais pertinentes, inclusive que seja emitido como forma de pagamento à vista de dívida contraída pelo emitente. Em sendo assim, é lógico e evidente que o cheque pré-datado, aquele que visa a um pagamento futuro, não pode e não deve ser considerado como título cambial, o que acarreta a impossibilidade jurídica de sua emissão configurar o delito acima referido.
Coisa diferente, porém, é o crime previsto no caput do art. 171 do mesmo Código, ou seja, o chamado estelionato simples. Para esta figura penal são exigidos determinados elementos sem os quais não haverá a infração. Ora, se é certo que o cheque transmudado de ordem de pagamento à vista para garantia de quitação futura não traz como conseqüência a consumação do delito específico, o mesmo não ocorre quando se fala do crime previsto no estelionato simples.
Para a configuração deste último crime urge que determinadas circunstâncias sejam observadas: em primeiro lugar que haja vantagem ilícita.
Ora, quem emite um cheque como forma de garantir uma compra efetuada a prazo e, na data acertada, sem justificativa nenhuma, não deposita o numerário suficiente para a respectiva quitação, auferiu ou não vantagem ilícita? A resposta é afirmativa, posto que o emitente recebeu as mercadorias, delas usufruiu e, no entanto, no momento da compensação financeira concertada com o vendedor, não honrou o compromisso. Induvidoso, por isso, a vantagem ilícita e em proveito próprio ou de terceiro.
A segunda exigência do tipo penal é a existência de prejuízo alheio; pergunta-se: o comerciante, ilaqueado em sua boa-fé, lesado na confiança depositada no seu cliente, sofreu ou não desvantagem patrimonial considerável? Afirma-se, também, o presente questionamento, visto que, despojado de bens a ele pertencentes, não teve o ressarcimento devido com o negócio efetuado, ou, em outras palavras, vendeu o que possuía e não recebeu a quantia equivalente, tendo, inquestionavelmente, prejuízo financeiro importante (R$ 25.000,00), ainda mais sobrevivendo unicamente desta atividade e tendo que pagar a seus fornecedores.
O terceiro requisito é a existência de meio fraudulento, induzindo ou mantendo alguém em erro, para a obtenção da vantagem indevida. Aqui, igualmente, encontramos suporte suficiente para adequar o cheque pré-datado ao tipo penal sob análise.
O fato de alguém, na data aprazada, não fazer o depósito necessário para que a sua conta corrente fosse suficientemente abastecida e pudesse, conseqüentemente, cobrir o cheque que seria depositado, por si só já indica conduta dolosa no sentido de prejudicar o terceiro mantido em erro, mediante a fraude, que consistiu, especificamente, em emitir um cheque, prometendo pagá-lo em determinada época e, neste momento (sabedor que era da obrigação assumida, em confiança), não honrar o compromisso assumido.
Entendemos, que a situação se conforma perfeitamente com o tipo penal do art. 171, caput, o que não foi considerado pelo acórdão recorrido que, em última análise, negou-lhe vigência.
Não é justo que o comerciante, lesado em seu patrimônio, fique desprotegido em detrimento da impunidade e incentivo ao enriquecimento ilícito. Ademais, o cheque pré-datado já é um instrumento corriqueiro no comércio brasileiro, usado indiscriminadamente pelos consumidores.
A propósito, o jornal O Globo, do dia 21 de junho de 1995, mais especificamente no Caderno de Economia, reportou-se a algumas considerações a respeito do fenômeno do cheque pré-datado, reafirmando a disposição da justiça carioca em considerar relevantes os efeitos jurídicos advindos da emissão do citado cheque, até mesmo transcrevendo opiniões que a seguir mostraremos:
Inicialmente, vejamos trecho de uma sentença do Juiz Sebastião Pereira de Souza, onde ele afirma que “apesar de o cheque pré-datado não existir legalmente, havia, nesse caso, uma relação jurídica entre o comprador e o vendedor”.
Já o Procurador de Justiça Dr. Hélio Gama entende que, “pelo tempo que vem sendo utilizado, cerca de dois anos, o cheque pré-datado se alçou à condição de nota promissória. Os tribunais têm considerado os cheques pré-datados assim, e não mais somente como pagamento à vista”.
Por sua vez, o advogado Antônio Mallet esclarece ter “o costume modificado a questão jurídica e, mesmo o cheque pré-datado não sendo reconhecido pela lei, existe um contrato entre as partes que deve ser cumprido, e não pode haver prejuízo de nenhum dos lados”.
Na matéria, a jornalista Nadja Sampaio informa que “em suas decisões, os juízes vêm entendendo que existe um contrato subentendido no acordo verbal entre consumidor e lojista, e ambas as partes têm de cumpri-lo”.
A transcrição da matéria jornalística demonstra bem a disposição em aceitar esta operação como juridicamente relevante, o que implica em também aceitá-la, do ponto de vista penal, como juridicamente tutelada.
Aliás, o próprio Nélson Hungria já esboçava, àquele tempo, uma opinião que se coaduna, mutatis mutandis, ao que hoje se pro­cura mostrar nestas razões recursais:
“(...) se falta qualquer dos requisitos formais exigidos pela lei, o título deixa de ser cheque, não se podendo falar, portanto, em ‘fraude no pagamento por meio de cheque’, embora possa ser reconhecido, no caso, o estelionato no seu tipo fundamental (ficando, assim, afastada a objeção de Donnedieu de Vabres, no sentido de que seria estranho que a circunstância de um vício de forma, que em nada atenua a imoralidade ou o caráter delituoso do agente, possa suprimir sua responsabilidade).”19 (grifo nosso).
O que o mestre do Direito Penal disse é que, ainda não se revestindo das formalidades legais exigidas (v.g., como ordem de pagamento à vista), a emissão do cheque poderá vir a configurar o delito de estelionato no seu tipo fundamental.
Também a jurisprudência, como veremos a seguir:
“Competência. Estelionato. Emissão de cheques pré-datados sem a suficiente provisão de fundos. Hipótese do art. 171, caput, do CP caracterizada. Juízo competente: o do local da emissão do cheque. A compra efetuada com cheques pré-datados emitidos em garantia e sem a suficiente provisão de fundos configura o delito da cabeça do art. 171 do CP, e não a hipótese do art. 171, § 2º, VI, do CP, que pressupõe a imediata apresentação da cártula ao estabelecimento bancário sacado; portanto, o Juízo competente para o processo e julgamento é o do local da emissão do cheque e não o da recusa pelo sacado.” (STJ, C. Comp. nº 16.403 – São Paulo, 3ª Seção, Rel. William Patterson, j. 23.4.97; v.u.).
“Agente que dá cheques em pagamento a serem cobrados na data posterior a emissão, pratica o delito do art. 171, caput (estelionato simples), e não o art. 171, § 2º, VI (fraude no pagamento por meio de cheque), ambos do CP. Assim, se o processo contém fatos descritivos do estelionato simples, e a condenação se dá pela fraude no pagamento por meio de cheques a decisão deve ser reformada com base no art. 621, I, do CPP.” (Tacrim-SP – Rev. – Rel. Tyrso Silva – RJD 7/244).
“Não se aplica a todas as hipóteses de emissão de cheques sem fundos o entendimento de que a sua descaracterização ou transformação, de ordem de pagamento à vista, para simples promessa, não conduz à tipicidade do estelionato. A proteção penal do cheque autêntico está no tipo do art. 171, § 2º, VI, do CP. O cheque pode ser instrumento hábil a consumação de outros estelionatos, desde que o sujeito ativo seja impelido pela vontade livre e consciente de, induzindo ou mantendo alguém em erro, obter, mediante fraude, vantagem ilícita, causando prejuízo patrimonial ao sujeito passivo. É o estelionato no seu tipo fundamental. É crime contra o patrimônio.” (Tacrim-SP – Rev. – Rel. Fábio de Araújo – RJD 1/223 – Jutacrim 97/505, com grifo nosso).
“Já se tem decidido que a emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado pode, em certos casos, não se constituir no delito previsto no art. 171, § 2º, VI, do CP, mas simplesmente tratar-se de um artifício complementar da ação delituosa do estelionato simples.” (Ac. un., de 27.10.70, da 1ª Cam. Tacrim-SP, Rel. Manoel Pedro, RT, v. 423, p. 437).
É sabido que a distinção entre ilícito civil e ilícito penal, passa, necessariamente, pela existência ou não de um elemento fundamental: o dolo em fraudar, ou, nas palavras de Hungria, “o propósito ab initio de frustração do equivalente econômico”.
Ademais, na lição de Manzini, a “distinzione tra frode civile e penale è non solo superflua o arbitraria, ma altrasì produttiva di dannosissima confusione, specialmente nei particolari riguardi della truffa (logro, vigarice, trapaça, tramóia...)”.20
Em face de todo exposto, certificando-se induvidosamente a negativa de vigência de lei federal por parte do acórdão recorrido, bem como demonstrado o dissenso jurisprudencial que também fundamenta o presente recurso especial, aguarda esta Procuradoria Geral de Justiça que seja deferido o seu processamento, a fim de que, conhecido pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, mereça provimento, reformando-se aquela decisão e firmando-se a responsabilidade penal do sentenciado como infrator do art. 171, caput, do Código Penal.

Salvador (BA), em 9 de agosto de 2002.

.........................................................
Procurador-Geral de Justiça
NOTAS
1 Recursos no Processo Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 3. ed., 2001, p. 269.

2 Obra citada, p. 270.

3 Apud Roberto Delmanto Júnior, in As Modalidades de Prisão Provisória e o seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 206.

4 Expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in mora (cfr. Delmanto Júnior, Roberto, ob. cit., p. 67).

5 Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, v. I, p. 79.

6 Idem, p. 481.

7 Idem, ibidem, p. 446.

8 “Toda a interpretação de um texto há de iniciar-se com o sentido literal” (idem, p. 450).

9 “Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com ou­tros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”, segundo nos ensina Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961, 7. ed., p. 164.

10 Infelizmente já houve um retrocesso, pois a nova lei de tóxicos (Lei nº 10.409/02, art. 46, § 12), estabelece que terão apenas efeito devolutivo os recursos interpostos contra as decisões proferidas no curso do respectivo procedimento, o que é lamentável.

11 Idem, p. 165.

12 Recursos no Processo Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 3. ed., 2001, p. 37.

13 Ada, Scarance e Magalhães Gomes Filho, obra citada, p. 271.

14 Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 1.401.

15 Observa-se, contudo, que “os embargos declaratórios não servem de expediente para forçar o ingresso na instância extraordinária, se não ocorreu omissão do acórdão, que se limitou a examinar o pedido tal como foi formulado, sob o aspecto da legalidade do ato.” (STJ, ED no MS nº 632-0, DJU 25.5.92, p. 7.352).

16 Ada, Scarance e Gomes Filho, ob. cit., p. 271.

17 Prequestionamento, Recurso Especial e Recurso Extraordinário, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 10. Sobre o assunto, conferir a obra de José Miguel Garcia Medina, O Prequestionamento nos Recursos Especial e Extraordinário, São Paulo, Revista dos Tribunais, 3. ed., 2002.

18 “Caberá ao Presidente do Tribunal, com efeito, verificar com maior profundidade as condições e pressupostos recursais (especialmente se está presente uma das hipóteses constitucionais de cabimento)”, como afirmam Ada, Scarance e Gomes Filho (p. 293).

19 Comentários ao Código Penal, v. VII, Rio de Janeiro: Forense, p. 250.

20 Trattato di Diritto Penale, vol. IX, nº 3.381, p. 385/386, apud Romeu de Almeida Salles Junior, in Apropriação Indébita e Estelionato, Jalovi, 2. ed., 1986, p. 217.

Nenhum comentário:

Postar um comentário