domingo, 27 de março de 2011

A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA APÓS A RESPOSTA À ACUSAÇÃO

Alinhada às novas tendências do processo penal, a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, acrescentou ao Código de Processo Penal (CPP) o art. 396-A, permitindo que o acusado argúa “preliminares” – matéria processual – bem como “tudo que interesse à sua defesa” – matéria de mérito1.
Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. 
§ 1º A exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código.
§ 2º Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias. 

Com a apresentação da resposta escrita à acusação (art. 396-A), deverá o juiz absolver sumariamente o réu nas hipóteses do novo art. 397 e rejeitar a denúncia pela admissão de qualquer preliminar, nos termos do art. 395 do CPP.
Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: 
I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
III – que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
IV – extinta a punibilidade do agente.

A peça de resposta escrita à acusação, prevista no art. 396-A do CPP, apresenta enorme relevância dentro da nova sistemática processual, sendo de apresentação obrigatória, responsável pela inauguração do contraditório e a primeira oportunidade para o exercício da ampla defesa.2
Diferentemente da já abolida defesa prévia (antiga redação do art. 395), o instrumento defensivo insculpido no art. 396-A reveste-se de relevância exponencialmente superior, tendo em vista ser peça que busca a absolvição sumária (art. 397 do CPP), a reconsideração do recebimento da denúncia e, especialmente, o meio hábil para o acusado “arguir preliminares”, “alegar tudo o que interesse à sua defesa”, “oferecer documentos e justificações”, “especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas”.
Deve, pois, o juiz, dentro da nova sistemática, analisar as razões preliminares e de mérito sustentadas na peça do art. 396-A e, sobretudo quando a decisão for no sentido da viabilidade da ação penal, dizer os motivos (fáticos e jurídicos) pelos quais entende que o Estado está legitimado a interferir de forma tão gravosa no status dignitatis e na esfera de liberdade do indivíduo.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais é uma das garantias do indivíduo contra o arbítrio estatal – responsável por permitir o exercício da ampla defesa – e, pela sua fundamental importância, merecedora de previsão constitucional (CF, art. 93, IX).
Além disso, pode-se dizer que a motivação das decisões judiciais afigura-se como garantia da administração da justiça em um Estado de Direito, pois permite o controle da legalidade e da imparcialidade dos provimentos jurisdicionais, e também como garantia das partes, uma vez que assegura a efetividade do contraditório, isto é, possibilita aferir se o julgador, para chegar à decisão, apreciou as provas e os argumentos trazidos pelos sujeitos do processo, abrindo-se a oportunidade para a impetração do recurso próprio ou de qualquer outro instrumento apto a reverter a decisão desfavorável.3
Antônio Magalhães Gomes Filho, em texto escrito antes da Reforma de 2008, já alertava para a necessidade de motivação da decisão que recebe a denúncia:
Assim, especialmente após a Constituição de 1988, não é possível continuar a entender-se que o provimento judicial que recebe a denúncia ou a queixa seja um mero despacho de expediente, sem carga decisória, que dispensaria a motivação reclamada pelo texto constitucional; trata-se, com efeito, de uma decisão que não pode deixar de ser fundamentada, o que, aliás, vem sendo ressaltado sem hesitações pela doutrina. (...)
Tal exigência evidencia-se ainda mais necessária naqueles procedimentos especiais em que a lei prevê uma possibilidade de defesa antes do ato de recebimento, como ocorre, v.g., nos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (art. 513 do CPP) [...] ou nas infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 81, caput, da Lei nº 9.099, de 1995). Em todas essas situações, se há defesa, não pode o juiz simplesmente desconsiderar as alegações apresentadas, deixando de motivar a sua decisão.4

A respeito da necessidade de fundamentação da decisão que recebe a denúncia, nos procedimentos que exigem a apresentação de resposta, a jurisprudência é uníssona:
AÇÃO PENAL. Funcionário público. Defesa preliminar. Oferecimento. Denúncia. Recebimento. Decisão não motivada. Nulidade. Ocorrência. Habeas corpus concedido para anular o processo desde o recebimento da denúncia. Oferecida defesa preliminar, é nula a decisão que, ao receber a denúncia, desconsidera as alegações apresentadas.
(STF – HC nº 84.919-SP, 2ª Turma, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJe 26.03.10). (Grifos nossos.)

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. PECULATO. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO. ALEGAÇÃO DE VÍCIO SOBRE A DECISÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. PROCEDIMENTO ESPECIAL. PREVISÃO DE DEFESA PRELIMINAR. NECESSIDADE DE ANÁLISE DAS PRELIMINARES ARGUIDAS PELA DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ORDEM CONCEDIDA PARA ANULAR O PROCESSO ATÉ A DECISÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA. PREJUDICADO O PEDIDO DE INÉPCIA MATERIAL E FORMAL DA PEÇA ACUSATÓRIA.
1. O procedimento da Lei nº 11.343/06 prevê, em seu art. 55, a apresentação de defesa preliminar pelo denunciado no prazo de dez dias.
2. Nos procedimentos especiais, em que o legislador exigiu defesa preliminar, é evidente a necessidade de motivação da decisão que recebe a denúncia, eis que, nesse tipo específico de procedimento, faculta-se à parte a manifestação pretérita ao ato decisório que deflagra a ação penal, podendo ela, inclusive, ofertar provas, tudo em homenagem ao princípio constitucional do contraditório.
3. A ausência de análise das preliminares suscitadas pelo denunciado em defesa preliminar constitui vício que macula o procedimento e requer a declaração de sua nulidade como forma de cessar o constrangimento.
4. Ordem concedida para anular o processo até a decisão que recebeu a denúncia, inclusive. Prejudicado o pedido de inépcia da peça acusatória.
(STJ – HC nº 89.765-SP, 6ª Turma, Relª. Desª. Conv. JANE SILVA, DJe 24.03. 08.) (Grifos nossos.)

Tratando-se de matéria recente, ainda são poucas as decisões dos tribunais especificamente acerca da necessidade de fundamentação da decisão proferida após a resposta escrita do art. 396-A.
Todavia, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já começou a se manifestar acerca da nova sistemática processual, ressaltando a importância da peça de resposta à acusação e da decisão motivada após a sua apresentação:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRETENSÃO DE PROCESSAMENTO DE EXCEÇÃO DE PRÉ-COGNIÇÃO, ANTES MESMO DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. DESRESPEITO AOS DIREITOS DE PETIÇÃO E DE ACESSO À JUSTIÇA QUE NÃO SE MOSTRAM REAIS. POSSIBILIDADE DE IMPETRAÇÃO DO WRIT, QUE PERMITE O PEDIDO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITO E DA AÇÃO PENAL. LEI PROCESSUAL PENAL QUE POSSIBILITA RÁPIDA RESPOSTA DO ACUSADO, ANTES DA INSTRUÇÃO E SUA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA.AUSÊNCIA DE PREVISÃO PARA O PROCESSAMENTO DA ALEGADA EXCEÇÃO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
Não constitui constrangimento ilegal a negativa de processamento de exceção de pré-cognição, não prevista na legislação processual penal.
Mesmo que admitida a possibilidade da exceção de pré-cognição, ela se mostra inoportuna quando ainda não foi oferecida a denúncia, porquanto ainda não existe uma acusação formalizada.
A impetração de habeas corpus para trancamento de inquérito ou de ação penal, no seu nascedouro, possibilita de igual modo o acesso à justiça e o direito de petição, ensejando ampla defesa ao paciente, tanto na fase do inquérito, como no decorrer da ação penal.
A reforma processual penal, ao cuidar do procedimento ordinário, trouxe normas que obrigam o juiz a fundamentar o despacho que recebe a denúncia.
É permitida, hoje, a pronta resposta à acusação, logo após o recebimento da denúncia, ensejando, inclusive, a absolvição sumária daqueles que nada devem à Justiça.
Recurso improvido.
(STJ – RHC nº 24.138-SP, 6ª Turma, Relª. Desª. Conv. JANE SILVA, DJe 02.03.09.) (Grifos nossos.)

Merece destaque, também, um leading case do Tribunal Regional da 3ª Região. Trata-se de pedido de habeas corpus, no qual a ordem foi concedida à unanimidade:
HABEAS CORPUS. PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDEN­CIÁRIA. DEFESA PRELIMINAR. ART. 397 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONTRADITÓRIO. FUNDAMENTAÇÃO. NULIDADE.
1. A defesa requereu a absolvição sumária do paciente, nos termos do art. 397, incs. II e III, do Código de Processo Penal, argumentando que houve ausência de dolo e inexigibilidade de conduta diversa, tendo em vista as dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa do acusado (fls. 300-340).
2. O MM Juízo a quo determinou o prosseguimento do feito para que as testemunhas fossem intimadas, considerando que não estavam presentes as hipóteses do art. 397 do Código de Processo Penal.
3. Entre as diversas alterações introduzidas na sistemática processual penal pela Lei nº 11.719/08, destacam-se a instituição da defesa escrita ou preliminar (arts. 396 e 396-A) e a possibilidade do magistrado, após a apresentação da aludida defesa preliminar, julgar antecipadamente o mérito da ação penal, absolvendo sumariamente o acusado, nas hipóteses elencadas no art. 397 do Código de Processo Penal.
4. Cumpre ao magistrado, tanto na hipótese de absolvição sumária como no caso de seu indeferimento, decidir de forma motivada, explicitando os fundamentos pelos quais acolhe ou rejeita as teses defensivas, atendendo, assim, a norma estampada no art. 93, inc. IX, da Constituição Federal.
5. A motivação das decisões judiciais afigura-se garantia da administração da justiça em um Estado de Direito, pois permite o controle da legalidade e imparcialidade dos provimentos jurisdicionais (garantia política), e também garantia das partes, pois assegura a efetividade do contraditório, isto é, possibilita aferir se o julgador, para chegar à decisão, apreciou as provas e os argumentos trazidos aos autos pelos atores processuais (garantia processual).
6. No caso em tela, existindo questão a ser dirimida, não se pronunciou, como visto, a autoridade coatora acerca das teses expendidas na defesa escrita, deixando de consignar, ainda que de forma sucinta, as razões pelas quais não estaria evidenciada a manifesta causa excludente de culpabilidade ou a patente atipicidade da conduta por ausência de dolo.
7. A expressão utilizada na decisão objurgada (“Apresentada pelo réu a resposta à acusação, inocorrentes as hipóteses do art. 397 do CPP, designo a data...”) é, com a devida venia, por demais vazia e genérica, não enfrentando concretamente as argumentações trazidas pela defesa e a rigor, dada sua vacuidade, poderia ser utilizada em qualquer processo para arredar a absolvição sumária, o que reforça a conclusão de que se encontra destituída de fundamentação. Nas per­cucientes palavras do Ministro Sepúlveda Pertence, em voto de sua relatoria: “(...) a melhor prova da ausência de motivação válida de uma decisão judicial – que deve ser a demonstração da adequação do dispositivo a um caso concreto e singular – é que ela sirva a qualquer julgado, o que vale por dizer que não serve a nenhum” (STF – HC nº 78.013-RJ, DJ 19.03.99, p. 9).
8. Observo, ainda, que o prejuízo ao paciente pelo não exame das teses defensivas torna-se evidente, pois, além de vulnerar o princípio do contraditório, impede que o paciente e sua defesa técnica tenham conhecimento dos motivos pelos quais não foi concedida a “absolvição sumária”, não sendo possível, neste contexto, sequer manejar recurso próprio ou outro meio de insurgência para reverter o decisum desfavorável.
9. Anoto, por fim, que a existência de contraditório prévio, antes da prolação de sentença, não é matéria inovadora na atual quadra da sistemática processual penal, havendo a previsão de apresentação de defesas preliminares, antes do recebimento da denúncia, em diversos procedimentos especiais (como, por exemplo, no art. 81, caput, da Lei nº 9.099/95 e no art. 55, § 1º, da atual Lei Antidrogas), sendo certo que a não apreciação das teses nelas aduzidas dará azo ao reconhecimento de nulidade. Precedentes.
10. Ora, se é reconhecida a nulidade por falta de fundamentação das decisões que recebem a denúncia, em procedimentos especiais, sem a apreciação dos argumentos defensivos, a fortiori deve ser também reconhecida tal nulidade na hipótese de não enfrentamento das questões arguidas em defesa preliminar (art. 396 do CPP), já que estas poderiam ter o condão de conduzir à própria extinção do feito com resolução de mérito, reconhecendo-se, com fulcro no art. 397 do CPP, a absolvição sumária do acusado.
11. Concedida a ordem para anular a ação penal a partir da decisão de fls. 320 (numeração originária) e atos subsequentes, devendo a d. Autoridade Coatora apreciar fundamentadamente as teses expostas na defesa preliminar.
(TRF-3ª Região – HC nº 2009.0300039047-2, Rel. para o Acórdão, Juiz Federal Conv. HELIO NOGUEIRA, DJe 12.02.10.) (Grifos nossos.)

Pergunta-se: De que adiantaria a apresentação (obrigatória) de resposta escrita à acusação – com a arguição de preliminares e tudo que interesse à defesa – se não fosse o juiz obrigado a se manifestar, fundamentadamente e naquele momento, sobre as teses ali sustentadas? Por qual motivo exigir a alegação de todas as matérias de rejeição da denúncia e de mérito se o juiz só estará obrigado a se manifestar sobre todas elas na sentença (como vigorava na antiga sistemática)?
A argumentação no sentido da desnecessidade de fundamentação simplesmente carece de lógica, consistindo em uma tentativa de se criar interpretação contra legem em desfavor do acusado, mantendo-se – contra a vontade do legislador e em violação ao devido processo legal – a sistemática anterior, a qual pode parecer mais cômoda ao magistrado.
Fácil é concluir que não teria sentido conferir à defesa a possibilidade de aduzir argumentação de questões processuais e produzir teses e provas que levariam a uma “absolvição sumária”, se estas pudessem ser simplesmente desprezadas pelo julgador.
A necessidade de fundamentação da decisão proferida após a apresentação de resposta à acusação é imperiosa, sob pena de decretação de sua nulidade por afronta ao mandamento do art. 93, IX, da Constituição Federal, bem como aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
NOTAS
1 O projeto do novo Código de Processo Penal (PL nº 156/09), recentemente aprovado pelo Senado Federal, de um modo geral, ratifica as modificações introduzidas pelas reformas de 2008, mantendo a fase de resposta escrita à acusação, com a possibilidade de o acusado arguir “tudo o que interessar à sua defesa” (art. 273).

2 Neste sentido, Eugênio Pacelli de Oliveira in Curso de Processo Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 602-603.

3 Acerca da importância da fundamentação das decisões judiciais, valiosas as lições da doutrina: MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 514-515; FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2007, p. 139-141; TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2009, p. 189; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito Processual Penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 19-20.

4 In: A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT, 2001, p. 209-210.

A PROVA DO DANO MORAL

Apesar de alguns juristas sustentarem que é imprescindível a produção de provas da dor experimentada pela vítima, já está sendo pacificado que, tendo em vista o “homem médio”, o dano moral se presume, bastando a prova da lesão.

Assim, entende-se que não é necessário que o indivíduo comprove que sofreu ou que se sentiu perturbado com determinada situação, devendo-se tomar como parâmetro o homem médio. A prova efetiva do dano pode ser afastada porque qualquer pessoa desse padrão que tivesse passado pela situação da vítima do dano teria experimentado as mesmas sensações.

Os danos morais não se provam. O que se há de comprovar é a ocorrência de acontecimentos que os ensejaram.

Não é necessário provar que sofreu e quanto sofreu, mas somente provar a ocorrência do ilícito e o nexo causal. Assim, provado o fato gerador do dano moral, resta somente quantificá-lo.
Deve-se tentar afastar o excesso de formalismo, para que a verdade constatada no processo corresponda o máximo possível a verdade real. Caso contrário, ante a impossibilidade de se provar a magnitude do sofrimento de uma pessoa, as ações de reparação por danos morais estariam, desde a sua impetração, fadadas ao malogro.

A lesão à moral do indivíduo perturba seu íntimo, dispensando qualquer prova
em concreto.

Humberto Theodoro Júnior¹ nos ensina que “a lesão ou dor moral é fenômeno que se passa no psiquismo da pessoa e, como tal, não pode ser concretamente pesquisado”. Dessa forma, existindo a lesão, presume-se o dano.
O STJ compartilha o mesmo entendimento da doutrina dominante, conforme se vê nos seguintes julgados:
“Não há falar em prova do dano moral, mas sim, na prova que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam”².
“A jurisprudência desta Corte está consolidada no sentido de que na concepção moderna da reparação do dano moral prevalece a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do prejuízo em concreto.”³
“Para efeito de indenização, em regra, não se exige a prova do dano moral, mas, sim, a prova da prática ilícita donde resulta a dor e o sofrimento, que o ensejam.”4
Está sendo pacificado, portanto, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a desnecessidade de se comprovar o dano moral para se justificar ação judicial dessa natureza.
Contudo, é necessário a quem alega o dano moral, descrever a ocorrência do fato, a incidência do dever jurídico violado e o nexo causal. Assim, basta provar a conduta que violou um dever e o nexo causal entre essa conduta e o dano, presumindo-se o prejuízo. Basta a ofensa para justificar a indenização.

NOTAS
1 Dano Moral. Juarez de Oliveira, 3. ed., São Paulo, 2000, p. 8.

2 STJ – REsp nº 86.271-SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes, J. 10.11.97, DJU 09.12.97.

3 STJ – REsp nº 196.024-MG, 4ª T, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJU 02.08.99.

4 STJ – REsp nº 204.786-SP, 3ª T, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito,

J. 07.12.99.

DO DIREITO PATRIMONIAL - DO USUFRUTO E DA ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DE FILHOS MENORES

Os filhos, enquanto menores e não emancipados, vêem-se submetidos ao poder familiar1 que é objeto de específica regulamentação inscrita nos artigos 1.630 a 1.638 do Código Civil de 2002, de onde se extrai que durante o casamento e a união estável a ambos os pais compete o seu exercício, respeitada, é certo, a delimitação que se acha inscrita no bojo da aludida norma substantiva2. O poder familiar, consoante se extrai do conjunto normativo em vigor, constitui um munus público que se acha orientado mais pela fixação de deveres para os pais do que propriamente para os filhos, embora estejam estes igualmente vinculados a certos e determinados encargos relevantes. Massimo Bianca, em conceito reproduzido por Paulo Luiz Netto Lôbo, consigna que “O poder familiar (potestà genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios funcionalizados aos cuidados e educação do menor e, ainda, os poderes de representação do filho e de gestão de seus interesses”3.

Trata-se, portanto, de direito-função que recebe regulamentação específica e que se reveste de uma condição peculiar dotada de grande relevância para a regulação da relação entre pais e filhos. E isto é confirmado pelo conjunto de atribuições que a ele se referem e que lhe dão substância, inscritas estas no rol de competências que é aos pais atribuído pela norma e que compreende dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e, ainda, exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Oportuno rememorar, no contexto ora enfocado, que essa regulamentação específica relativa ao poder familiar encontra-se contida em capítulo que compõe o Subtítulo II, do Título I, do Direito de Família (Livro IV), onde, ao referir-se ao direito pessoal, inscreve disposições que se voltam a disciplinar as relações de parentesco, tratando não só do poder familiar, mas, ainda, da filiação (artigos 1.596/1.606), do reconhecimento de filhos (artigos 1.607/1.617) e da adoção (artigos 1.618/1.629).

O PODER FAMILIAR NA ESFERA PATRIMONIAL

Postas tais considerações preliminares a respeito do poder familiar e de seu conteúdo, cumpre observar que mais adiante constam no Código Civil, já na esfera do direito patrimonial (Título II do Livro IV), outras disposições voltadas a regulamentar a relação entre pais e filhos mas, nesse ponto, ao lado do regime de bens, dos alimentos e do bem de família, já se cuida e dá atenção em subtítulo específico a questões de cunho tipicamente patrimonial voltadas a regular, de modo particularizado, o usufruto e administração de bens de filhos menores (artigos 1.689/1.693) que, embora decorrente e relacionado ao poder familiar, é disciplinado de forma destacada.
Com esse escopo específico, estatui o artigo 1.689 do Código Civil de 2002 que o pai e a mãe, enquanto estiverem no exercício do poder familiar, são usufrutuários4 e têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade. Fundamentadas estão a prerrogativa e o encargo conferidos no fato de não serem os filhos, enquanto detentores dessa condição de menoridade, capacitados ao desempenho pleno de atos da vida civil5, exigindo ou a representação ou a assistência de seus genitores.
Ao se conferir esse usufruto aos pais, pelo que se pode perceber, a eles se outorga, em razão da condição econômica dos filhos, uma compensação pelas despesas com a sua criação e educação, embora sejam diretamente responsáveis por isso e não possam, ordinariamente, pretender ou exigir qualquer reembolso com tal fim.
No desempenho da função de administração, conforme estatui o artigo 1.690, aos pais compete em conjunto – e na falta de um deles ao outro com exclusividade – representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los após essa idade e até completarem a maioridade ou, nos moldes previstos em lei, serem emancipados6, sem deixar de rememorar, a respeito, que os pais devem decidir em comum as questões relativas aos filhos e a seus bens. Advindo divergência entre ambos, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para a solução necessária (parágrafo único).
O que se faz, por meio de tais disposições legais, é deferir a ambos os genitores – legalmente e de forma automática – a condição de administradores dos bens dos filhos menores, o que perdura enquanto estiverem os pais no exercício do poder familiar e no desempenho regular das atribuições que dele diretamente resultam, assegurando-lhes, independentemente quaisquer providências formais com esse escopo, o usufruto de tais bens, sem que fiquem, para o desfrute desse direito real de fruição, submetidos à obrigação de prestar caução. Dispensados ficam igualmente, por conseqüência de se ter uma atribuição legal peculiar, da obrigação de prestar contas.
Resulta certo de tais disposições, pois, que sendo detentor de patrimônio próprio o filho menor e não emancipado, os seus pais são autorizados, enquanto estiverem investidos no poder familiar e se não houver disposição contrária imposta por terceiro validamente7, a desfrutar da condição de usufrutuários de tais bens nos moldes previstos nos artigos 1.3948 e 1.4009 do Código Civil, os quais regulam direitos e deveres do usufrutuário, respeitadas, todavia, as normas que ora são objeto de exame e que, de modo específico, acomodam regras a respeito dessa relação peculiar que se estabelece entre pais e filhos.

PROIBIÇÕES LEGAIS IMPOSTAS AOS PAIS

Restrição outra, voltada à proteção do patrimônio que se acha aos pais confiado, é vista no bojo do artigo 1.691 do Código Civil. Estatui-se ali que não é permitido aos pais alienar10, ou mesmo gravar de ônus real11 os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo quando restar caracterizada necessidade ou evidente interesse da prole, o que somente se admitirá mediante a obtenção de prévia autorização do juiz, demandando, portanto, o ingresso no Judiciário com pedido formal devidamente motivado12, ficando os genitores, após a prática do ato autorizado, vinculados ao dever de prestar contas13.
Adite-se, outrossim, que se vier a ser constatado cometimento de ato que desatenda ao que se estipula na disposição referida, ou seja ocorrendo a alienação sem prévia autorização judicial, ou a gravação dos bens com ônus real, ou, ainda, a assunção de encargos exagerados poder-se-á demandar a nulidade por meio de ação própria, estando legitimados para isso, no entanto, apenas os filhos, os herdeiros e o representante legal (artigo 1.691, parágrafo único).

CONFLITO DE INTERESSES

Explicita-se, outrossim, que sempre que no exercício do poder familiar vier a ser constatada divergência entre o interesse dos pais com o do filho, disso resultará impedimento para que exercitem a função de representação ou de assistência, devendo o juiz, a requerimento do filho ou do Ministério Público, nomear curador especial a quem competirá exercer os atos que aos pais competiriam praticar (artigo 1.692).
Oportunas, a respeito, as lições ofertadas por Carlos Roberto Gonçalves14, quando põe em destaque que a alegação de conflito de interesses não exige a prova de que o pai pretenda lesar o filho, bastando, para a caracterização da colidência que estejam – pai e filho – posicionados em situações cujos interesses são aparentemente antagônicos. Exemplifica citando a venda de ascendente a descendente, que depende do consentimento dos demais descendentes15. Ao desejar assim proceder, deve o filho menor estar representado ou assistido por curador especial nomeado especificamente para esse efeito.

BENS EXCLUÍDOS DA ADMINISTRAÇÃO
E USUFRUTO DOS PAIS

Forçoso pôr em destaque e observar, por fim, que nem todos os bens que integram o patrimônio do filho podem ser objeto de usufruto e ficarão submetidos à administração dos pais. A lei, conforme previsão inscrita no artigo 1.693, exclui expressamente dessa condição: I – os bens adquiridos pelo filho havido fora do casamento, antes do reconhecimento16; II – os valores auferidos pelo filho maior de dezesseis anos, no exercício de atividade profissional e os bens com tais recursos adquiridos; III – os bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados, pelos pais; IV – os bens que aos filhos couberem na herança, quando os pais forem excluídos da sucessão.

NOTAS
1 O poder familiar compreende um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. Apresenta o poder familiar as seguintes características: 1. constitui um munus público (poder-dever; direito-função); 2. é irrenunciável; 3. é inalienável ou indisponível; 4. é imprescritível; 5. é incompatível com a tutela; e 6. detém natureza de uma relação de autoridade, criando um vínculo de subordinação entre os genitores e os filhos.

2 Fixa-se um conjunto de direitos e deveres dos pais em relação à pessoa e aos bens dos filhos menores não emancipados, especialmente visando a delimitar o exercício do poder familiar.

3 Direito de Família e o Novo Código Civil, Coordenação Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, 4. ed. rev. atual., Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 148.

4 O usufruto é ó direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade, consoante definição que se oferecia no artigo 713 do Código Civil de 1916 e que se mantém atual no âmbito doutrinário, prestando à sua conceituação. É normatizado pelo Código Civil de 2002 nos artigos 1.390 a 1.411, onde se dispõe sobre disposições gerais, direitos e deveres do usufrutuário e extinção do usufruto.

5 Sílvio de Salvo Venosa, em abordagem sobre o assunto, assevera a respeito com a reconhecida proficiência que “os filhos menores não possuem capacidade de direito para administrar seus bens, que a eles podem advir de várias formas, mormente por doação ou testamento ou por fruto de seu trabalho, Direito Civil – Direito de Família, v. 6, 2. ed., São Paulo, Atlas, 2002, p. 348.

6 A menoridade, conforme prescreve o artigo 5º, caput, do Código Civil, cessa aos dezoito anos completos, quando fica a pessoa, então, habilitada para a prática de todos os atos da vida civil. O parágrafo único dessa mesma disposição estipula que a incapacidade cessa para os menores nas hipóteses que ali se encontram relacionadas, dentre as quais aquela contida no inciso I, expressada da seguinte forma: “pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos”.

7 Esclarece Carlos Roberto Gonçalves (in Direito Civil Brasileiro, VI volume, Direito de Família, São Paulo, Saraiva, 2005,

p. 427) que “... a administração e o usufruto podem ser subtraídos do poder familiar por disposição expressa do doador ou do testador, que podem indicar outro administrador dos bens respectivos”.

8 “Artigo 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.”

9 “Artigo 1.400. O usufrutuário, antes de assumir o usufruto, inventariará, à sua custa, os bens que receber, determinando o estado em que se acham, e dará caução, fidejussória ou real, se lha exigir o dono, de velar-lhes pela conservação, e entregá-los findo o usufruto.”

10 Alienar é transferir para outrem o domínio de coisa ou o gozo de direito que pertence a alguém. Compreende vender, doar ou trocar por outra a coisa ou o direito que se tem.

11 Gravar é onerar a coisa, hipotecá-la, sujeitá-la a encargos ou quaisquer ônus reais.

12 Ementa: Autorização para venda de bem de menor. Exige cumprida demonstração de necessidade ou utilidade para a prole (artigo 386 do Código Civil). Sem a demonstração, indefere-se o pedido. Decisão: Conhecer o recurso e improver. Unânime. (TJDFT – 2ª Câmara Cível – Embargos Infringentes na APC EIC nº 3644596-DF – Acórdão

nº 91300 – Julgamento em 04.09.96 – Relator: Mario Machado – Publicação no DJU de 26.02.97 – p. 2427).

13 Ementa: Civil e Processual Civil – Preliminar – Incompetência absoluta – Ação de prestação de contas – Alienação de bem de menor. Compete ao Juízo de família que autorizou a alienação de bem de menor processar e julgar a respectiva ação de prestação de contas. O Ministério Público acha-se legitimado para exigir prestação de contas do genitor que, autorizado a alienar bem do filho incapaz, deixou de informar o destino dado à quantia recebida. Decisão: Conhecer, rejeitar as preliminares, e, no mérito, negar provimento ao recurso. Unânime. (TJDFT – 4ª Turma Cível – Apelação Cível nº 20000150020889APC-DF – Acórdão

nº 141299 – Julgamento em 07.06.01 – Relator Sérgio Bittencourt – Publicação no DJU de 22.08.01 – p. 66).

14 Op. cit., p. 438.

15 Código Civil – artigo 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

16 Sílvio de Salvo Venosa esclarece que “Quanto aos bens adquiridos pelo filho fora do casamento, antes do reconhecimento, a norma tem nítido caráter moral: pretende-se não transformar o ato de reconhecimento como incentivo à cupidez para o pai reconhecente. Ademais, enquanto não houver reconhecimento, não há poder familiar” (Op. cit. p. 351).

Arthur da Nobrega

PRISÃO CAUTELAR – EXCESSO DE PRAZO - Como decidem os Tribunais

HABEAS CORPUS Nº 170.488-SP (2010/0075367-9)

Relator: Ministro Jorge Mussi
Impetrante: A. F.
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Paciente: A. F. (preso)

EMENTA
HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRISÃO EM FLAGRANTE. EXCESSO DE PRAZO. RAZOABILIDADE. GRAVIDADE DA CONDUTA E PERICULOSIDADE DO AGENTE. NECESSIDADE DE MUDANÇA CONSTANTE DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL. AUSÊNCIA DE DESÍDIA DO ESTADO-JUIZ. RETOMADA DA REGULAR MARCHA PROCESSUAL. CONSTRANGIMENTO NÃO EVIDENCIADO.
1. Não se vislumbra o alegado constrangimento por excesso de prazo na custódia do paciente que, autuado em flagrante aos 08.10.09 pelo suposto cometimento do crime de estupro de vulnerável, teve que ser reiteradas vezes transferido de estabelecimento prisional, tendo em vista a extrema reprovabilidade da conduta que lhe é atribuída e visando a garantir sua própria integridade física, circunstância que acarreta natural alongamento do sumário.
2. Ademais, não se constata desídia da autoridade judiciária na condução do feito que, apesar das vicissitudes enfrentadas, procura imprimir-lhe celeridade, tanto que, realizada audiência em 06.10.10, para colheita da prova oral, designou-se sua continuidade para 26.11.10, evidenciando assim a retomada da regular marcha processual.
3. Ordem denegada.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem. Os Srs. Ministros Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ-AP), Gilson Dipp, Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 26 de outubro de 2010 (data do julgamento).
Ministro JORGE MUSSI
Relator

RELATÓRIO
O Excelentíssimo Senhor Ministro JORGE MUSSI: Tra­ta-se de habeas corpus impetrado de próprio punho por A. F., preso em flagrante em 08.10.09 e denunciado pela prática do delito previsto no art. 217-A do Código Penal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, julgando o HC nº 990.10.112059-3, denegou a ordem, mantendo sua constrição processual.
Irresignado com a decisão colegiada, sustenta o impetrante a ocorrência de constrangimento ilegal ante o excesso de prazo na formação da culpa, eis que se encontra preso há mais de 1 ano sem que se tenha encerrado a instrução criminal.
Pugna, assim, pela concessão da ordem, determinando-se a expedição do competente alvará de soltura em seu favor.
Foram solicitadas informações ao Tribunal indicado como coator, que as prestou às fls. 20-21, acompanhadas de cópias das peças processuais que entendeu pertinentes ao feito.
Instado, o Ministério Público Federal opinou pela denegação do writ (fls. 49-51).
É o relatório.

VOTO
O Excelentíssimo Senhor Ministro JORGE MUSSI (Relator): Colhe-se dos autos que o paciente foi preso em flagrante em 08.10.09 e denunciado pela suposta prática do delito previsto no art. 217-A do Código Penal.
Indeferido o pedido de relaxamento da custódia, formulado em seu favor, a defesa ajuizou remédio constitucional perante a Corte de origem, que, ao denegar o writ, sublinhou: “O acenado excesso de prazo não foi ocasionado e nem é de responsabilidade da MMª. Juíza impetrada, pois diversas as diligências e os atos necessários para a regular e normal marcha do processo” (fl. 47).
Insurge-se, assim, o impetrante contra o alegado excesso de duração da medida de cautela, sublinhando que, passado mais de 1 ano da sua segregação, ainda não teria encerrado a respectiva instrução, em afronta ao princípio da razoável duração do processo.
De um exame dos elementos acostados aos autos, no entanto, não se vislumbra a sustentada coação, porquanto as características do caso concreto justificam eventual dilação que, na hipótese, não extrapola os limites da razoa­bilidade, indicando não haver desídia da autoridade judiciária na condução do feito.
Extrai-se, nesse sentido, das informações prestadas pelo juízo singular:
Tratam-se de autos da ação penal instaurada aos 19.10.09, porque teria o paciente praticado o delito do art. 217, Código Penal (detido em flagrante delito aos 08.10.09).
Oferecida a denúncia, a prisão cautelar do acusado foi mantida, uma vez presentes os requisitos da prisão preventiva, e expedida precatória para citação aos 12.11.09.
Ocorre que, devido à gravidade dos fatos praticados pelo réu, o mesmo vem sendo constantemente transferido de unidade prisional, sem que se alcance o cumprimento da precatória expedida (redistribuída a cada remoção em razão de seu caráter itinerante).
Neste sentido, o réu, inicialmente recolhido no Centro de Detenção Provisória do Município de Bauru, em outubro de 2009, foi transferido para a Cadeia Pública de Gália e, após, para a Penitenciária I do Município de Balbinos-SP (remoção ocorrida em 26.02.10). A precatória para citação foi redistribuída à Comarca de Pirajuí na data de hoje (fl. 29).

Nota-se, assim, que eventual atraso decorre da natureza e da extrema gravidade, no caso concreto, do crime que é atribuído ao paciente, o que impõe a necessidade de constante transferência de estabelecimento prisional visando preservar sua integridade física, circunstância que conduz a um natural alongamento do sumário, sem que, no entanto, configure a alegada coação por excesso de prazo.
Apesar dos percalços enfrentados no processamento do feito, o juízo singular tem procurado imprimir celeridade ao processo que, ao que tudo indica, retomou sua regular tramitação, tanto que, realizada audiência no dia 06.10.10, na qual se colheu parte da prova oral, designou-se sua continuação para o dia 26.11.10, esvaziando-se, assim, a alegação de constrangimento veiculada na inicial, consoante precedentes desta Corte Superior. Veja-se:
HABEAS CORPUS. ROUBO DUPLAMENTE CIRCUNSTANCIADO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. EXCESSO DE PRAZO QUE NÃO É EXACERBADO, TAMPOUCO INJUSTIFICADO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTADA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA.
1. Os prazos indicados para a consecução da instrução criminal servem apenas como parâmetro geral, pois variam conforme as peculiaridades de cada processo, razão pela qual a jurisprudência uníssona os tem mitigado, à luz do Princípio da Razoabilidade. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
2. Na hipótese, ressalto que a prisão data de 21.04.09 e, pelo que se verifica das informações obtidas junto à Corte de origem, o feito apresenta regular processamento, tendo em vista as peculiaridades do caso, que apresenta pluralidade de réus e necessidade de expedição de cartas precatórias, não se constatando o apontado constrangimento ilegal.
3. A manutenção da custódia preventiva encontra-se suficientemente fundamentada, em face das circunstâncias do caso que, pelas características delineadas, retratam, in concreto, a periculosidade do agente, a indicar a necessidade de sua segregação para a garantia da ordem pública, em se considerando, sobretudo, o modus operandi do delito e a existência de fortes indicativos de que a atividade criminosa era reiterada, o que demonstra, com clareza, a perniciosidade da ação ao meio social.
4. Condições pessoais favoráveis do agente não são aptas a revogar a prisão preventiva, se esta encontra respaldo em outros elementos dos autos.
5. Ordem denegada, com recomendação de urgência na conclusão do feito. (HC nº 145.038-SC, Relª. Minª. LAURITA VAZ, Quinta Turma, julgado em 29.10.09, DJe 30.11.09.)

No mesmo sentido:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. FALTA DE JUSTA CAUSA. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE PRAZO PARA FORMAÇÃO DA CULPA. COMPLEXIDADE DO FEITO (EXPEDIÇÃO DE CARTAS PRECATÓRIAS E ELEVADO NÚMERO DE RÉUS). CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA, COM RECOMENDAÇÃO.
1. Não constitui falta de justa causa a ausência de qualificação do acusado na denúncia, especialmente porque houve aditamento pelo Ministério Público, a fim de apresentar a devida qualificação.
2. O excesso de prazo para o término da instrução criminal, segundo pacífico magistério jurisprudencial deste Superior Tribunal, deve ser aferido dentro dos limites da razoa­bilidade, considerando circunstâncias excepcionais que venham a retardar a instrução criminal e não se restringindo à simples soma aritmética de prazos processuais.
3. Tem-se como justificada a exasperação do prazo na conclusão da instrução criminal, por se tratar de ação penal complexa, com elevado número de denunciados e necessidade de expedição de cartas precatórias para outras comarcas.
4. Ordem denegada, com recomendação para que a sentença seja prolatada o mais breve possível. (HC nº 114.935-MA, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, Quinta Turma, julgado em 18.03.10, DJe 19.04.10.)

Diante do exposto, não se vislumbrando constrangimento por excesso de prazo na prisão do paciente, denega-se a ordem.
É o voto.

O DIREITO REAL DE USUFRUTO

Jorge Luiz Zaniné bacharel em Direito da Universidade de Caxias do Sul (RS).
Neste artigo abordaremos o usufruto. O seu nome deriva do conteúdo do próprio direito de gozo, que compreende o uti e o fruti, isto é a faculdade de usar da coisa alheia, como dela gozaria o proprietário, salvo esta limitação: que se deve conservar a substância da coisa para poder se reintegrar o direito do proprietário quando, terminado o usufruto, o seu poder volte a ter toda a plenitude normal. Estes dois caracteres substanciais, um positivo de gozo, outro negativo do limite, são bens postos em evidência na conhecida e concisa definição romana: Usus fructus est jus alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia. Devidamente traduzido, significa: usufruto é o direito de usar uma coisa pertencente a outrem e de perceber-lhe os frutos, ressalvada a sua substância.1

Desses dois caracteres, que se fazem acompanhar, como nota fundamental, da natureza real do direito, derivam todas as outras determinações de seu conteúdo: a temporaneidade do direito, que não se conceberia constituído perpetuamente; a possibilidade de o fazer valer erga omnes, de onde resulta a diferença com qualquer outro gozo de coisa alheia atribuído com base numa relação obrigatória; as amplas faculdades, pertencentes ao usufrutuário, de desfrutar e dispor da utilidade econômica da coisa, e as mais restritas conferidas ao simples proprietário, a que correspondem, respectivamente, as obrigações recíprocas de não atacar nem alterar a função econômico-social da coisa e de não perturbar o gozo do titular: a insusceptibilidade conceitual das coisas, que se consomem com o uso, de serem objeto de usufruto. Todas as normas especiais, às vezes muito minuciosas, que o código dita, resumem-se naqueles dois princípios, que constituem a essência do instituto, convindo recorrer sempre a eles para compreender as que se referem ao objeto, aos direitos e obrigações do usufrutuário e aos modos de extinção.2
Venoza adverte, de início, que sua utilidade prática na atualidade se restringe quase que exclusivamente às hipóteses de doação por ascendentes a descendentes, com reserva de usufruto vitalício aos primeiros. Nas separações conjugais e no direito testamentário também é útil para acomodar situações de partilha, embora o juiz não possa concedê-lo de ofício, como em outras legislações. Fora dessas hipóteses não mais se encontrará a utilidade original do Direito Romano, embora nosso ordenamento desça às minúcias tradicionais de todas as legislações para regulamentá-lo.3
Prossegue ainda o mesmo autor, qualificado como Direito real, embora sua utilidade mais palpável seja para os bens corpóreos, também pode ter por objeto bens incorpóreos, como créditos, direitos intelectuais, hoje já não mais classificados como direitos reais propriamente ditos.
O usufrutuário não recebe o jus abutendi, ou seja, o direito de alienar e consumir a substância do bem, a qual fica reservada ao nu-proprietário, como é rotulado o dono da coisa nessa modalidade. Tudo indica que o instituto já era conhecido na época clássica do Direito Romano. No entanto, sua origem é mais recente do que as servidões prediais. Seu nascimento está relacionado com o Direito de Família. No casamento, a mulher não ingressava na família do marido, não se tornando sua herdeira. Para evitar que em seu falecimento ela ficasse em penúria, o varão a designava usufrutuária de certos bens de seu patrimônio, independentemente de testamento. Interessante notar, como veremos, que o Direito de Família e de sucessões vigente até recentemente entre nós mantém o usufruto em certas situações peculiares, confirmando sua origem e mantendo seu caráter alimentício.
Perante o usufrutuário, o dono da coisa era denominado dominus proprietatis ou proprietarius (palavra que no latim clássico nunca teve a compreensão genérica atual). O hoje designado nu-proprietário conserva a faculdade de dispor da coisa, mas não pode praticar nenhum ato que reduza ou embarace o uso e gozo do usufrutuário, tal como hodiernamente, em sua origem não era permitido ao usufrutuário alterar a destinação da coisa. Para garantir sua conservação e restituição ao final do prazo, o usufrutuário podia ser obrigado a prestar caução (cautio usufructuaria), tal como mantida no direito vigente. Essa caução também tinha por finalidade custear as despesas ordinárias com a conservação da coisa. A caução perdura em nosso código, no artigo 1.400 (antigo artigo 729), pois o usufrutuário deverá, antes de assumir o usufruto dos bens, prestar caução “fidejussória ou real se lha exigir o dono, de velar-lhes pela conservação, e entregá-los findo o usufruto”.4
De maneira geral todos os princípios consagrados na codificação de Justiniano mantiveram-se intactos no Direito moderno. Usufruto, uso e habitação eram então denominados servidões pessoais, em razão do proveito que proporcionam ao beneficiário, ao sujeito especificamente e não as coisas, contrapondo-se as servidões prediais, que vinculam à utilidade em prol de prédios vizinhos.
O usufrutuário pode obter da coisa toda utilidade que ela proporciona, devendo, porém, respeitar sua própria existência e, de maneira geral, observar também sua destinação econômica. Portanto, a utilização ampla e quase completa da coisa é deferida ao usufrutuário, ainda que limitada no tempo, no que difere da enfiteuse.
Tratando-se de restrição de vulto ao direito de propriedade, é ela temporária, porque doutro modo o domínio restaria praticamente sem conteúdo, não sendo esta a intenção primeira de sua criação. Lembra-se de que as origens históricas da enfiteuse e do usufruto são diversas e traduzem-se em diversas motivações intrínsecas de seus instituidores. Nada disto foi alterado no direito atual.5
O Código Civil atual deixou de apresentar a definição de usufruto, a qual no teor do Código Civil de 1916 textualmente declara que: “constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”.
No entender de Maria Helena Diniz6, se infere que o usufruto não é restrição ao direito de propriedade, mas sim a posse direta que é deferida a outrem que desfruta do bem alheio na totalidade de suas relações, retirando-lhe os frutos e utilidades que produz. Perde desta forma o proprietário o jus utendi e o fruendi, que são poderes inerentes ao domínio, porém não perde a substância, o conteúdo de seu direito de propriedade que lhe fica na nua propriedade.
O usufruto pressupõe, desta forma, a coexistência harmônica dos direitos do usufrutuário, constituídos em torno da idéia de utilização e de fruição da coisa, e dos direitos do proprietário, que os perde em proveito daquele, conservando todavia a substância da coisa ou a condição jurídica de senhor dela. O ponto de partida para a sua configuração é a distinção dos dois elementos principais, substância e proveito, na propriedade: o proprietário pode tê-los ambos ou abandonar o proveito a outrem7.
No usufruto têm-se dois sujeitos: o usufrutuário, que detém os poderes de usar e gozar da coisa, explorando-a economicamente, e o nu-proprietário, que faz jus à substância da coisa, tendo apenas a nua propriedade, despojada de poderes elementares. Conserva, porém, o conteúdo do domínio, o jus disponendi, que lhe confere a disponibilidade do bem nas formas permitidas por lei, mantendo, portanto, a condição jurídica de senhor do referido bem8.
No entender de Arnaldo Rizzardo9, o usufruto apresenta algumas semelhanças com institutos afins, como o fideicomisso.
Nesta figura, através de uma disposição, a pessoa – o fideicomitente – institui herdeiros e legatários, mas com a imposição dirigida a um deles – fiduciário – de, sob termo ou condição, transmitir ao outro – fideicomissário – a herança ou o legado.
No usufruto, institui-se alguém para desfrutar um bem alheio como se dele próprio fosse, sem qualquer influência modificativa na nua propriedade.
Ressalta que no fideicomisso – o que não ocorre no usufruto – a propriedade é transmitida, por primeiro, ao fidu­ciário. Após sua morte ou a certo tempo, a mesma propriedade vem a ser transferida ao fideicomissário (artigo 1.733 do Código Civil de 1916 e artigo 1.951 do Código de 2002).
Não há fragmentação da propriedade, ou concentração de alguns de seus poderes em uma pessoa, ficando a outra com a substância da mesma, situação necessária ao usufruto. A propriedade vai por inteiro ao fiduciário, e, depois, ao fideicomissário. Como se vê, existe uma ordem no exercício da propriedade – antes o fiduciário, depois o fideicomissário.
No entender de Venoza10, embora tecnicamente o usufruto e a enfiteuse não se confundam, ambos os institutos aproximam-se. No usufruto, ocorre repartição dos poderes da propriedade entre nu-proprietário e usufrutuário, que exercem de forma simultânea. Ambos são titulares concomitantes de direitos inerentes à propriedade. No fideicomisso, há uma disposição sucessiva da propriedade plena, que primeiramente é atribuída ao fiduciário, que a certo tempo, sob certa condição ou em sua morte a transferirá ao fideicomissário.
No fideicomisso existe disposição testamentária complexa (embora não se negue a possibilidade de ser instituído negocialmente, por ato entre vivos), por meio da qual o testador institui alguém, o fiduciário, por certo tempo ou sob condição, seu herdeiro ou legatário, o qual recebe bens em propriedade resolúvel, para que, com o implemento da condição, advento do termo ou sua morte, os transfira ao outro nomeado sucessivo, o fideicomissário. Tanto o fiduciário como o fideicomissário recebem os bens diretamente do fideicomitente (testador, se especificamente decorrente de ato de última vontade; doador, se por ato entre vivos, ou então alienante de forma geral). A passagem de bens do fiduciário ao fideicomissário apenas se opera materialmente, porque, pela disposição testamentária, o fideicomissário é herdeiro ou legatário que recebe diretamente do testador. Enquanto não se torna proprietário, o fideicomissário é titular de direito eventual, podendo, portanto, ingressar com medidas acautelatórias para evitar o perecimento de seu direito futuro.
Como fideicomisso e usufruto podem aproximar-se nas dicções testamentárias, é preciso entender a ocorrência de fideicomisso quando o testador diz que os bens passam de um beneficiário para outro, após a morte, certo prazo ou condição. Se o testador beneficia alguém, com reserva da substância a outrem institui usufruto, ainda que não seja expresso. Persistindo dúvida na interpretação, há que se propender pela conclusão da instituição de usufruto, uma vez que ambos os beneficiários poderão usar e gozar de plano dos bens, sem a falibilidade inerente ao fideicomisso. No atual código restringe-se enormemente a possibilidade de se instituir fideicomisso, pois “a substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador” (artigo 1.952).
Ao distinguirmos o usufruto do fideicomisso, vem à baila a proibição do usufruto sucessivo, permitido outrora no direito anterior à nossa codificação. O Código de 1916 limitou sua duração à vida da pessoa natural e a 100 anos para a pessoa jurídica (30 anos no atual Código). O sempre lembrado mestre Washington de Barros Monteiro aponta a situação que, com razão, define como de perplexidade. Ocorre quando se conjuga a instituição de usufruto em doação ou testamento com a imposição da cláusula de inalienabilidade. Na prática está determinado que compulsoriamente o direito de dispor seja transferido apenas ao sucessor do filho, pois este não poderá alienar o imóvel quando se consolidar a propriedade em suas mãos. Conclui o autor que nessa hipótese se configura usufruto sucessivo proibido pelo ordenamento, embora aponte julgados em ambos os sentidos, com maioria para os que admitem a inalienabilidade. Entendemos, contudo, que assiste absoluta razão ao mestre e que nessa hipótese deve ser tida como ineficaz a antipática cláusula de inalienabilidade, por contrariar o espírito do usufruto. Diferentemente, Pontes de Miranda não vê óbice na instituição de usufruto sucessivo no que está praticamente isolado na doutrina brasileira.11
Com a enfiteuse, desponta igualmente proximidade, na medida em que a propriedade, nesta espécie, é exercida em caráter simultâneo, por dois titulares, enquanto no usufruto há utilização do bem pelo usufrutuário, perdurando o domínio junto ao nu-proprietário. Com o enfiteuta concentra-se o domínio útil. Com o usufru­tuário, todavia, recaem o uso e o gozo. Na enfiteuse, porém, os poderes do enfiteuta são mais extensos e profundos, posto o direito que lhe é outorgado para dispor desses poderes de uso e gozo, vendendo-os, doando-os ou permutando-os. No usufruto tal não sucede, já que instituído para proveito exclusivo da pessoa favorecida. Naquela, o domínio útil é perpétuo e transmissível; no último, os poderes transferidos são temporários e intransmissíveis, envolvendo, ainda, bens móveis como seu objeto, ao contrário da outra figura, que recai apenas em terras não cultivadas e terrenos não edificados.12
A perpetuidade é característica da enfiteuse, que se distingue da temporariedade do usufruto. Os princípios e origens históricas diversas de ambos os institutos os afastam de qualquer outra similitude, que não o aspecto material externo. O direito do enfiteuta é transmissível, o do usufrutuário não o é. No entanto, “entre a enfiteuse, o usufruto, o uso e a habitação há gradação da extensão do gozo e todos restringem o domínio, sem lhe tirar a perpetuidade e a exclusividade que os caracterizam”.13
Para Maria Helena Diniz14, tanto a enfiteuse como o usufruto constituem direito real sobre coisa alheia e possuem dois titulares, porém: 1. na enfiteuse o foreiro pode dispor do domínio útil, tem direito de resgate, podendo até transmiti-lo; no usufruto, o usufrutuário não poderá transmitir seu direito; este é inalienável, podendo tão-somente ceder seu exercício; 2. a enfiteuse é perpétua; o usufruto temporário; 3. a enfiteuse recai sobre terrenos para a agricultura ou edificações; o usufruto recai sobre bens móveis, imóveis e direitos; 4. a enfiteuse é onerosa, o enfiteuta deverá para o foro; o usufruto é gratuito.
Igualmente não se confunde com o condomínio. Neste, os comunheiros exercem em conjunto todos os poderes da propriedade, em idêntico nível, apenas limitados pela existência de sujeitos com direitos iguais. No usufruto existe gradação ou repartição no exercício dos direitos de proprietário, como fartamente ilustrado. Ademais, o direito de usufruto é sempre temporário. O exercício do usufruto assemelha-se ao condomínio quando são vários os usufrutuários, que, no entanto, são tratados como usufrutuários entre si na comunhão estabelecida.15
A locação e o usufruto conferem o direito de desfrutar de bem alheio, mas:
a) o usufruto é direito real, oponível erga omnes, e a locação, pessoal, de modo que o direito do locatário só pode ser exercido contra o locador; b) o usufruto incide sobre coisas corpóreas ou incorpóreas e a locação só recai sobre bens corpóreos; c) o usufruto nasce de lei, ato jurídico inter vivos ou causa mortis, de usucapião etc., ao passo que a locação decorre apenas de contrato; d) o usufruto é gratuito e a locação onerosa, sendo indispensável o pagamento de aluguel.16
Para Rizzardo17, constata-se alguma semelhança com a locação quanto ao uso e gozo da coisa, que em ambas as espécies se verificam. Mas as diferenças ressaltam em pontos fundamentais, como no pagamento do aluguel, na natureza de direito pessoal e na relação restrita entre locador e locatário, que emergem na locação, ao passo que no usufruto não se estabelece uma contraprestação, sendo de direito real o contrato, e valendo, por conseguinte, erga omnes. Recai a primeira figura apenas em coisas corpóreas, contrariamente ao usufruto, que é constituível sobre bens materiais, direitos intelectuais ou autorais, créditos, patentes de invenções, fundo de comércio, além de outras emanações do engenho humano.
A mesma configuração se dá com o comodato, tanto na semelhança restrita ao uso e gozo do bem nas duas formas, quanto nas diferenças que despontam, citando-se v.g. a natureza de direito pessoal no comodato, contrariamente ao usufruto, de cunho eminentemente real.18
Da anticrese, o usufruto distingue-se porque esta tem por base a extinção de uma obrigação preexistente, colocando-se um bem como garantia de seu cumprimento. Nos sistemas que não admitem a anticrese, porém, o usufruto pode-lhe fazer as vezes.19

Para Saber Mais

Enfiteuse: (aforamento, emprazamento, prazo, foro) é o contrato pelo qual o senhor de um prédio concede a outro o domínio útil dele, com reserva do domínio direto. Neste contrato, a propriedade plena, ou o complexo dos diferentes direitos que a constituem, decompõe-se, para assim dizer, ficando uma parte no antigo senhor, como o direito de pedir o cânon, do laudêmio, da consolidação, e outros, ao que chamamos domínio direto, ou domínios dominicais; a outra parte passa para o enfiteuta, a qual consiste principalmente na faculdade de cultivar e tirar toda a utilidade, a que chamamos domínio útil. O primeiro chama-se senhor direto, ou simplesmente senhorio; o segundo, senhor útil, enfiteuta, foreiro, caseiro.
* A enfiteuse pode também constituir-se por testamento, o que é pouco freqüente – Ordenação, Liv. 4, Tít. 37, § 8º. E por isso alguns a definem concessão, em lugar de contrato.
(Coelho da Rocha, M. A. – Instituições de Direito Civil)

NOTAS
1 Ruggiero, Roberto de. Instituições de Direito Civil, v. II, tradução da 6ª edição italiana por Paolo Capitano, anotada por Paulo Roberto Benasse, Bookseller, Campinas, São Paulo, 1999, 1. ed.,

p. 615.

2 Ruggiero, Roberto de. Instituições de Direito Civil, v. II, tradução da 6ª edição italiana por Paolo Capitano, anotada por Paulo Roberto Benasse, Bookseller, Campinas, São Paulo, 1999, 1. ed.,

p. 615 e 616.

3 Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil, Direitos Reais, v. III, 4. ed., Atlas S.A., São Paulo, 2004, p. 457 e 458.

4 Idem, p. 458.

5 Idem, p. 459.

6 Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, 4. v.,

19. ed., Saraiva, São Paulo, p. 398.

7 Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. IV, 18. ed., Forense, Rio de Janeiro, p. 289.

8 Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, 4. v.,

19. ed., Saraiva, São Paulo, p. 399.

9 Rizzardo, Arnaldo. Direito das Coisas, Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 935 e 936.

10 Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direitos Reais, v. III, 4. ed., Atlas S.A., São Paulo, 2004, p. 467 e 468.

11 Idem, p. 468.

12 Rizzardo, Arnaldo. Direito das Coisas, Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 936.

13 Venosa, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 466.

14 Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, 4. v.,

19. ed., Saraiva, São Paulo, p. 407.

15 Venosa, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 466.

16 Diniz, Maria Helena. Op. cit., p. 409.

17 Rizzardo, Arnaldo. Direito das Coisas, Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 936.

18 Rizzardo, Arnaldo. Direito das Coisas, Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 936.

19 Venosa, Silvio de Salvo. Op. cit., p. 466.

DO DIREITO PATRIMONIAL DO REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS

Airton Rocha Nóbregaé advogado no Distrito Federal e professor na Universidade Católica de Brasília – UCB e na Fundação Getúlio Vargas – FGV, articulista, com especialização em Direito Público, autor de inúmeros artigos e de obras jurídicas dentre as quais o Curso Avançado de Licitações e Contratos, Juarez de Oliveira e Questões Relevantes nas Licitações Públicas, Fortium.


Em cada um dos regimes patrimoniais até agora examinados, identifica-se uma determinada característica que se presta a dar-lhes individualidade e a diferenciá-los entre si. A comunhão parcial1 institui como marco inicial para a formação de uma massa comum o surgimento do vínculo matrimonial. A comunhão universal2 enseja a formação de um patrimônio único integrado por bens anteriores e posteriores ao casamento, salvo as exceções que a própria lei estipula. A participação final nos aqüestos3 é regime em que se tem patrimônios individualizados e que assim permanecem durante o casamento, admitindo, no entanto, por ocasião da dissolução da sociedade conjugal, a apuração de bens adquiridos pelo casal com o esforço comum para efeito de partilha.

O regime da separação de bens, regulado de forma simples e bem objetiva nos artigos 1.687 e 1.688 do Código Civil, denota ser o regime que decerto mais se harmoniza com a real natureza do vínculo matrimonial, como bem acentua Bridel, citado por Washington de Barros Monteiro, quando assevera que o casamento não pode consistir na anulação de uma individualidade em proveito de outra, e sim, deve consistir no recíproco respeito de duas individualidades juridicamente iguais4.
Há na doutrina, todavia, quem sustente que essa condição patrimonial individualizada que se firma por meio da eleição desse regime apresenta-se em claro confronto e dissociado dos fins do casamento, onde o que se busca e se almeja é o compartilhamento de tudo quanto a ele esteja relacionado e dele decorra. Pode-se afirmar que a emprestar consistência a esse raciocínio, o Código Civil contempla em disposições expressas que “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” (artigo 1.511), sem deixar de asseverar que por meio dele “... homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família” (artigo 1.565), conferindo-lhes, dentre os diversos deveres, o de mútua assistência que também detém, é certo, conteúdo de ordem patrimonial (artigo 1.566, III).
Resulta induvidoso, no entanto, que mesmo considerando tão abalizados entendimentos, resta assegurado aos nubentes pelo sistema normativo em vigor optarem livremente pelo regime que melhor consultar aos interesses comuns, salvo em determinadas hipóteses quando a lei impõe justificada limitação compelindo-os a adotarem o regime da separação de bens. Afora isso, são livres para deliberar a respeito e elegerem aquele regime que mais lhes convier.

CONCEITUAÇÃO E ELEMENTOS CARACTERÍSTICOS

Trata-se de regime patrimonial em que se observa claramente que os cônjuges preservam a propriedade e a administração dos bens que integram a massa patrimonial que já lhes pertencia ao contraírem o vínculo matrimonial e que assim permanecerá durante todo o seu tempo de duração, não se prevendo a comunicação de quaisquer bens, ou mesmo de dívidas anteriores e posteriores ao casamento. Silvio Rodrigues assevera que o “regime da separação é aquele em que os cônjuges conservam não apenas o domínio e a administração de seus bens presentes e futuros, como também a responsabilidade pelas dívidas anteriores e posteriores ao casamento”5.
Sílvio de Salvo Venosa informa que “característica desse regime é a completa distinção de patrimônio dos dois cônjuges, não se comunicando os frutos e aquisições e permanecendo cada qual na propriedade, posse e administração de seus bens”. Acrescenta, ainda, que “Esse regime isola totalmente o patrimônio dos cônjuges e não se coaduna perfeitamente com as finalidades da união pelo casamento”6. Rolf Madaleno, inovando na forma de referir-se ao tema em comento, registra que “A doutrina informa que o regime da separação de bens representa em efeito a ausência de um regime patrimonial, caracterizado justamente pela existência de patrimônios separados7. Clóvis Beviláqua anota que o que caracteriza esse regime é a completa separação de patrimônio dos dois cônjuges, nenhuma comunicação se estabelecendo entre as duas massas, os dois acervos8.
O Código Civil de 2002, ao regular o tema, prescreve que “Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real” (artigo 1.687), emprestando, assim, consistência às diversas definições construídas a respeito pela doutrina especializada e anteriormente referida e realmente instituindo um regime em que elementos de diferenciação são claramente detectados. A adoção desse regime confere a cada cônjuge, pelo que se percebe, domínio pleno sobre os bens que integram o seu patrimônio e, também, assegura ampla autonomia na gestão e na fruição livre e desembaraçada dos mesmos.
Forçoso notar, pois, que nesse regime de bens não se comunicam entre os cônjuges os bens anteriores ao casamento e que incomunicáveis permanecem durante sua vigência os frutos deles auferidos, assim como não se transferem os bens e frutos adquiridos e obtidos após o início da relação matrimonial. Formam-se, com o matrimônio, duas massas patrimoniais individualizadas e que assim se mantêm durante todo o tempo em que durar o casamento.



ADOÇÃO OBRIGATÓRIA DO REGIME DA SEPARAÇÃO

Adotar o regime da separação de bens, conforme se pode concluir pelo que anteriormente restou exposto, é, em princípio, uma faculdade para os nubentes que, por meio de pacto antenupcial, terão liberdade para regular o regime patrimonial que mais adequado se mostre para ambos. Diga-se, todavia, que essa opção que é legalmente assegurada nem sempre poderá ser livremente exercida. Em determinadas circunstâncias ter-se-á que obrigatoriamente eleger o regime da separação de bens.
E isto ocorrerá sempre que se façam presentes, como já restou dito alhures, as situações aludidas no artigo 1.641 do Código Civil de onde se extrai que a adoção obrigatória desse regime patrimonial terá que ser exercitada quando: I – as pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento previstas no artigo 1.5239; II – da pessoa maior de sessenta anos, seja homem ou mulher; e, ainda, III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial10.

ASSUNÇÃO COMUM DOS ENCARGOS DOMÉSTICOS

Ao referir-se à eficácia do casamento, preocupa-se o Código Civil em regular os efeitos decorrentes do ato matrimonial e, dentre outros aspectos específicos, estabelece que são os cônjuges obrigados a concorrer para o sustento da família e para a educação dos filhos na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, seja qual for o regime patrimonial que tenha sido por eles adotado oportunamente (artigo 1.568). Essa divisão proporcional de despesas encontra amparo no princípio da plena igualdade entre os cônjuges, reiterado e normatizado no âmbito do Código Civil.
Embora nenhuma outra disposição se fizesse exigível para regular a responsabilidade desse encargo comum e que naturalmente se estabelece e decorre da formação do vínculo matrimonial, opta o Código Civil, por meio da regra inscrita no artigo 1.688, por renovar a orientação que adota a respeito, estatuindo que, mesmo quando se tenha adotado o regime da separação de bens, são obrigados os cônjuges a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, embora admita expressamente estipulação de forma diversa, inscrita esta em convenção antenupcial.

NOTAS
1 “Artigo 1.658. No regime da comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.”

2 “Artigo 1.667. O regime da comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.”

3 “Artigo 1.672. No regime de participação final nos aqüestos, cada cônjuge possui patrimônio próprio, consoante disposto no artigo seguinte, e lhe cabe, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento.”

4 Curso de Direito Civil, v. 2, 37. ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 215.

5 Direito Civil, Direito de Família, v. 6, 27. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 215.

6 Direito Civil, Direito de Família, v. 6, 2. ed., São Paulo, Atlas, 2002, p. 193.

7 Direito de Família e o Novo Código Civil, Coordenação Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, 4. ed., Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 191.

8 Citado por Washington de Barros Monteiro. Op. cit., p. 215.

UMA ECONOMIA VICIADA EM JUROS ELEVADOS?

Antonio Corrêa de LacerdaEconomista. Professor Doutor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autor, entre outros livros, de Globalização e Investimento Estrangeiro no Brasil (Saraiva). Foi Presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (SOBEET).


O Governo Federal deverá ter cuidado na calibragem do aumento de juros, por dois principais motivos. O primeiro é que o Brasil já pratica a maior taxa de juro real do mundo e é preciso avaliar corretamente qual a necessidade de elevá-la ainda mais. A taxa Selic, que acaba de ser aumentada para 11,25% ao ano, representa um juro real de 5,5%, quando descontada a inflação prevista para os próximos doze meses. Isso é mais do que o dobro da média dos países em desenvolvimento e, portanto, incompatível com a melhora de todos os indicadores macroeconômicos da economia brasileira nos últimos anos.
O segundo ponto é a necessidade de se caracterizar, claramente, a causalidade da inflação atual, que decorre muito mais de choques de oferta do que de pressões de demanda. Grande parte da elevação da inflação decorre de fatores cuja influência da taxa de juros é muito limitada, para não dizer nula, e os quais não controlamos diretamente. É o caso do aumento observado no mercado internacional de commodities, basicamente grãos, combustíveis, metais e outros, que decorrem não apenas do crescimento da demanda, mas também de especulação nos mercados financeiros internacionais.
As commodities tornaram-se ativos disputados como alternativa de investimentos de grandes fundos, especialmente diante do quadro atual, de baixíssimas taxas de juros na maioria dos países. Há, ainda, fatores sazonais internos, como o impacto da temporada de chuvas, que geram uma inflação localizada e episódica, também descolada de um aumento da demanda que exigisse medidas de contenção.
Afiguraria um erro de diagnóstico, a partir dessas pressões, concluir equivocadamente que seria necessário aumentar a taxa de juros para combatê-las. Depois de um crescimento próximo de 8%, em 2010, a economia brasileira deverá se acomodar nos próximos anos, com um crescimento mais perto dos 5%. Naturalmente, já está havendo uma desaceleração da taxa de crescimento, o que também vai ocorrer com a restrição de crédito decorrente de medidas tomadas anteriormente pelo Governo.
Por último, mas não menos importante, é preciso destacar que o aumento de juros não se configura medida neutra, pois causa tanto efeitos deletérios para a economia produtiva, como promove a geração de lucros especulativos no mercado financeiro.
Há um verdadeiro lobby pró-elevação de juros, orquestrado por parte daqueles que se beneficiam com a medida, como os credores da dívida pública, que são todos os que aplicam direta ou indiretamente em títulos da dívida pública, e o próprio mercado financeiro, que é interme­diário do processo. Como parte destes títulos são pós-fixados, o aumento de juros representa diretamente uma elevação dos seus ganhos.
Não é por acaso que frequentemente assistimos a um aparente “consenso” pela elevação dos juros, ou pela sua manutenção em níveis elevados. Há interesses fortíssimos envolvidos, que acabam influenciando a opinião pública. Muito pouco se questiona a respeito da real necessidade de manter taxas de juros tão elevadas e menos ainda de elevá-las mais. Há um claro processo de acomodação, como se a economia, outrora viciada em inflação, a tivesse substituído pelos juros altos.
Os dados são impressionantes. Como a dívida pública brasileira é da ordem de R$ 1,5 trilhão, o seu financiamento tem custado cerca de R$ 190 bilhões ao ano. São recursos que pagamos sob a forma de impostos, que o Estado arrecada e transfere aos seus credores. Cada ponto percentual de elevação da taxa de juros representa, potencialmente, um gasto adicional de R$ 15 bilhões a cada ano. Isto é mais do que o custo anual de todo o Programa Bolsa Família, para se ter uma ideia do estrago para as contas públicas.
É muito importante que o Banco Central tenha autonomia, relativamente ao Governo. Mas é também fundamental que não se mantenha refém de movimentos especulativos, que privilegiam uma pequena camada da sociedade, em detrimento do interesse coletivo.
Por todos os motivos apontados, já passou da hora de uma mudança expressiva. Isso vale tanto para paradigmas que têm de ser questionados, como o piso para a redução dos juros no Brasil, quanto para o Sistema de Metas de Inflação em si, que deve ser preservado, mas precisa ser aperfeiçoado. Há muito a ser feito, desde os indicadores e o prazo para o foco da meta, até a forma de captação das “expectativas” dos agentes do mercado.
É também urgente rever o elevado grau de indexação da economia brasileira, especialmente das tarifas públicas. A correção automática de preços, baseada em indicadores que têm pouca relação com a estrutura de custos dos setores, como é o caso do IGP e do IGP-M, utilizados na maioria dos contratos, representa uma anomalia, incompatível com a nossa realidade atual.

terça-feira, 22 de março de 2011

Interceptação telefônica e notificação do alvo

Um ponto que ainda é polêmico no processo penal brasileiro diz respeito à posterior ciência ao investigado, nos casos em que a interceptação das comunicações telefônicas ou de dados não gera ação penal contra o investigado-alvo.
Entendo que o procedimento não é inquisitivo, mas sim de contraditório diferido. Enquanto for necessário, deve haver o sigilo. Mas em algum momento deve o investigado ser notificado, para que saiba que foi objeto de interceptação, já que sua intimidade, um direito constitucional, foi devassada.
É bem verdade que uma boa parcela dos atores jurídicos, é refratária à notificação posterior. O principal argumento é simples: não há essa obrigatoriedade na lei.
É verdade que somente no anteprojeto do novo Código de Processo Penal há dispositivos que determinam a notificação do alvo, após encerrado o procedimento:

“Art. 11. É garantido ao investigado e ao seu defensor acesso a todo material já produzido na investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento.
(...)
Art. 39. Arquivado o inquérito policial, o juiz das garantias comunicará a sua decisão à vítima, ao investigado e ao delegado de polícia.”

Contudo, proponho não raciocinarmos tendo como paradigma a lei ordinária, atualmente lacunosa.
Vamos analisar a questão em termos de direitos fundamentais, pois creio ser essa a seara adequada, uma vez que seu direito à intimidade (CR, art. 5º, X) foi violado, embora que sob o auspício de necessidade de se investigá-lo para se desvendar um crime. Cabe asseverar que essa violação de um direito constitucional é de tal gravidade que está submetida à reserva de jurisdição.
Essa ponderação de princípios constitucionais, que em determinado momento decaiu a proteção da intimidade em benefício do princípio da inafastabilidade (art. 5º, XXXV) e da proteção da sociedade em razão de um crime grave (de reclusão), não havendo comprovação de qualquer ilegalidade por parte do investigado-alvo, deve ser readequada.
Prevalecem, então, os direitos à intimidade e à presunção de inocência (CR, art. 5º LVII) para, pelo menos, dar ciência ao alvo, de que teve sua vida íntima devassada. Isso se dá também, acredito eu, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana. Não cabe ao Estado bisbilhotar a vida privada das pessoas, em vão. Isso permite também que o alvo, diante de uma indevida intromissão, possa se socorrer do Judiciário para saber sob quais argumentos houve a investigação e se ocorreu desvio de finalidade (ou algo mais grave) por parte da autoridade solicitante.
Outrossim, permitirá que acompanhe e cobre a destruição das mídias em que se encontram as gravações que devassaram sua intimidade.
Caso houvesse a prática de se notificar o alvo em caso de investigações infrutíferas, não teríamos convivido com as experiências recentes de excessivo uso das interceptações telefônicas. E tais excessos findaram por atingir inocentes, ocasionando a edição de Resolução do CNJ, que ocasionou prejuízos ao todos os magistrados criminais, em razão da burocracia gerada (relatórios periódicos que constantemente são modificados em seu conteúdo, gerando dispêndio de tempo e aborrecimentos).
Se houvesse a prática de adotarmos a transparência nas interceptações findas, com a posterior notificação dos alvos, tenho certeza de que tais fatos não teriam chegado ao ponto em que chegaram. E o momento certo para a ocorrência dessa notificação é o do arquivamento do inquérito contra a parte que foi o “alvo” da medida invasora da privacidade. E não procede o argumento de que poderá no futuro haver desarquivamento do inquérito e novo pedido (em dez anos de magistratura, nunca me deparei com um tal desarquivamento, diga-se de passagem). Ninguém pode ser considerado suspeito ad eternum

Assim, embora a práxis judiciária normalmente não notifique os investigados em inquéritos policiais arquivados, entendo que o mais adequado constitucionalmente seria fazê-lo. É também um resguardo ao próprio magistrado que deferiu a medida, pois a autoridade policial, ciente dessa práxis, agirá com maior cautela e será mais cuidadosa antes de fazer a solicitação. Trata-se de evitar a judicialização do grampo.



* Rosivaldo Toscano é Juiz de Direito e membro da Associação Juízes Para a Democracia - AJD

segunda-feira, 21 de março de 2011

RESPOSTA DO RÉU - A RECONVENÇÃO

Em título voltado a regular o desenvolvimento do procedimento comum ordinário, contempla o Código de Processo Civil um conjunto de regras que se referem à petição inicial (capítulo I), resposta do réu (capítulo II), revelia (capítulo III), providências preliminares (capítulo IV), julgamento conforme o estado do processo (capítulo V), provas (capítulo VI), audiência (capítulo VII) e sentença e coisa julgada (capítulo VIII), apresentando-se, de forma esquemática, para melhor compreensão, o seguinte conteúdo:




A regulamentação alusiva aos meios de resposta acha-se inscrita a partir do art. 297, quando explicita, a respeito, que “O réu poderá oferecer, no prazo de 15 (quinze) dias, em petição escrita, dirigida ao juiz da causa, contestação, exceção e reconvenção”. Têm-se como certo, pois, que ao réu é dado reagir contra a ação que lhe foi movida pelo autor, por meio de contestação, exceção e reconvenção. Com a citação do réu exsurge não um dever de reagir, mas um ônus, já que não está, em princípio, obrigado a se defender.



A contestação, conforme abordagem anteriormente feita1, constitui meio de reação do réu contra a pretensão que foi deduzida pelo autor, caracterizando resistência ao pedido formulado pela contraparte. A reconvenção é ação do réu contra o autor ajuizada, por medida de economia processual, nos mesmos autos2. As exceções são incidentes processuais que têm por objeto argüir a incompetência relativa do órgão judicial, a suspeição ou o impedimento do magistrado3, conforme o caso.
José Frederico Marques, com reconhecida proficiência, ao cuidar dos mecanismos de defesa e de reação que ao réu são conferidos, assevera que a “reconvenção é a ação proposta pelo réu contra o autor, no processo constituído pela propositura de ação deste contra aquele”4. Cândido de Oliveira Filho, de forma igualmente didática, afirma que “a reconvenção é a ação proposta pelo réu contra o autor no mesmo feito e juízo em que é demandado”5.
Humberto Theodoro Júnior ao realizar abordagem sobre o tema ora em comento, afirma que “ao contrário da contestação, que é simples resistência à pretensão do autor, a reconvenção é um contra-ataque, uma verdadeira ação ajuizada pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), nos mesmos autos”.6 Evidencia o ilustre autor que o fundamento do instituto acha-se baseado no princípio da economia processual já que dispensa a instauração de diversos processos que envolvam as mesmas partes e que se refiram a matérias que guardem conexão entre si.

NORMAS APLICÁVEIS À RECONVENÇÃO

Tratando especificamente da reconvenção, estabelece o Código de Processo Civil, em seu art. 315, que “O réu pode reconvir ao autor no mesmo processo, toda vez que a reconvenção seja conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa”.
Cumpre pôr em destaque, pelo conteúdo dessa disposição, que a reconvenção não se constitui uma obrigação para o réu. A opção deste por não fazer uso desse mecanismo no prazo e no modo devidos não acarreta qualquer dano ao seu direito, porquanto poderá, a qualquer instante, ajuizar demanda com objetivo específico7. Isto, aliás, pode se mostrar até mesmo mais conveniente em razão das circunstâncias, evitando que eventual pressa venha a implicar em prejuízo para a postulação que pretende deduzir.
A recepção e o conseqüente processamento da reconvenção exige o atendimento a alguns pressupostos específicos. A primeira delas resulta, é óbvio, da necessidade de que haja ação em curso, regularmente ajuizada e admitida. As partes8, na reconvenção, serão as mesmas da ação, pois não se admite a alteração da relação processual inicialmente formada. Ocorre, isto sim, a inversão da posição das partes. O réu assume a condição de postulante, como reconvinte, enquanto o autor da ação tem contra si voltada a pretensão daquele, assumindo a condição de reconvindo.



Requisito outro é que haja conexão entre a reconvenção e a ação principal ou, ainda, com o fundamento da defesa. Ocorre o fenômeno da conexão, consoante se extrai do art. 103 do Código de Processo Civil, quando se verificar ser comum o objeto ou a causa de pedir entre duas ou mais ações. Oportuno pôr em relevo que restando constatada a existência de conexão ou continência cumpre ao juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, ordenar a reunião de ações propostas em separado, a fim de que sejam decididas simultaneamente (CPC, art. 105). Isso visa a evitar decisões contrastantes.
A verificação da existência de conexão apta a justificar a reconvenção dar-se-á ante a constatação de que há identidade de objeto, ou coincidência de causa petendi. Haverá conexão na primeira hipótese, por exemplo, quando a mulher, pretendendo ver dissolvida a sociedade conjugal que mantém com seu marido contra ele ajuíza ação de separação litigiosa aduzindo afronta ao dever de mútua assistência. O marido, citado para a ação, contesta negando os motivos apontados pela mulher e, ao mesmo tempo, deduz contra ela pretensão baseada em alegação de adultério. No segundo caso, verbi gratia, fundar-se-á a pretensão deduzida pelo autor em um determinado contrato celebrado com o réu e, este, em reconvenção, deduz pretensão em seu favor fundada igualmente no mesmo título.
Poderá resultar a reconvenção, outrossim, do desejo de ver o réu-reconvinte fazer prevalecer determinada tese que, embora sustentada em sede de contestação, também se prestará embasar o pedido formulado em seu benefício. Argúi o réu em sua contestação, por exemplo, a ocorrência de vício em contrato que empresta suporte à pretensão do autor. A reconvenção, considerando esse argumento expendido, postula a declaração de nulidade do ato e, em conseqüência disso, a condenação do autor em perdas e danos.
Outros aspectos relevantes ao recebimento e processamento da reconvenção respeitam à competência do juiz e ao rito adotado. Somente caberá a reconvenção quando o juiz da causa foi o competente para conhecer e decidir as questões nela propostas, assim como se o rito for o adequado para esse fim e efeito. Sem o concurso de tais requisitos inviável será a sua propositura.

ASPECTOS PROCEDIMENTAIS

A reconvenção, consoante explicita o art. 315 do estatuto adjetivo, deve ser oferecida em peça autônoma, no mesmo prazo da contestação (15 dias). A petição que a tanto se destina deve observar os mesmos requisitos especificados para a petição no art. 282 do Código de Processo. Protocolada a peça, será ela apensada aos próprios autos da ação, onde se dará todo o seu processamento, não se fazendo, pois, a sua autuação em apartado.
Recebida e despachada a reconvenção, será, então, providenciada a formação da relação processual9. A formalização do ato que a tanto se destina é feita por meio do procurador do autor-reconvindo, o qual será inequivocamente intimado10 para contestar a reconvenção no prazo de 15 dias, pena de ver decretada a sua revelia se não o fizer. Nesse sentido, estatui o art. 316 do CPC que “Oferecida a reconvenção, o autor-reconvindo será intimado, na pessoa do seu procurador, para contestá-la no prazo de 15 dias”.
A contestação à reconvenção deve ser oferecida em peça que observe as prescrições feitas nos arts. 300 e 301 do Código de Processo Civil, incumbindo ao autor-reconvindo esgotar, nesta oportunidade, as matérias e questões que entenda pertinentes e compatibilizadas ao pleno exercício do seu direito de defesa.
Cabe rememorar que, conforme preceitua o art. 317 do CPC, externando o autor pedido em que venha a desistir da ação, ou sendo ela extinta por qualquer outra causa, não haverá óbice ao prosseguimento da reconvenção. Instruído o feito e estando ele em condições de receber decisão, serão julgadas na mesma sentença a ação e a reconvenção (art. 318).

RECONVENÇÃO NO PROCEDIMENTO
COMUM SUMÁRIO E EM JUIZADOS CÍVEIS

Estando a demanda subordinada ao procedimento comum sumário a que se refere o art. 275 do Código de Processo Civil, não cabe falar-se em reconvenção que venha a adotar o modelo legalmente instituído para o procedimento comum ordinário. Ao réu se faculta, em tal circunstância, formular, no bojo da própria contestação – e não em peça apartada – o pedido em seu favor, desde que fundado esse pleito nos mesmos fatos referidos na petição inicial.11
As ações propostas perante os Juizados Especiais Cíveis também não comportam reconvenção segundo a fórmula inscrita para o procedimento comum. A Lei nº 9.099, de 1995, estatui, em seu art. 31, ipsis verbis, que “Não se admitirá a reconvenção. É lícito ao réu, na contestação, formular pedido em seu favor, nos limites do art. 3º12 desta Lei, desde que fundado nos mesmos fatos que constituem objeto da controvérsia”.
Observa-se, assim, que tanto em uma situação como em outra, não se afasta a possibilidade de que a parte formule pedido em seu favor, o que, de ordinário, faria por meio de reconvenção. Em tais procedimentos, todavia, o pedido contraposto deduzido pelo réu contra o autor da ação é veiculado de forma simplificada, inscrito no corpo da própria contestação. Desnecessário e inaceitável que a postulação do réu seja formulada em peça específica e apartada da contestação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reconvenção, como visto, é um dos diversos meios de reação do réu ao pedido deduzido na exordial, embora não detenha caráter obrigatório e se constitua em mera faculdade que ao demandado se confere, pois o pleito que por meio dela se veiculará também poderá ser postulado por meio de ação própria.
É, portanto, instrumento em que se permite ao réu esboçar não uma mera reação contra o pedido contido na exordial, mas formular pleito em seu próprio favor, impondo ao juiz o dever de examinar a pretensão e, vindo a acolhê-la, imputar determinada conseqüência ao reconvindo que normalmente não adviria e não se tornaria possível se não houvesse ocorrido o pedido reconvencional.



modelo

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA 20ª VARA DE FAMÍLIA DA
CIRCUNSCRIÇÃO ESPECIAL JUDICIÁRIA DE BRASÍLIA (DF)

Proc. nº 2003.01.1.005 050-1

Percilina Pretextata Protestante,
brasileira, casada, comerciante, portadora do CPF nº 800.700.600-55, domiciliada e residente no Distrito Federal, nos autos da ação de separação litigiosa referenciada em epígrafe, vem, por advogado, com embasamento no art. 315 do Código de Processo Civil, deduzir pretensão em seu favor por meio de
RECONVENÇÃO
EM FACE DE



Manuel SolLa de Sá PaTto,
brasileiro, casado, engenheiro, portador do CPF nº 222.111.777-99, domiciliado e residente na SQN 419, Bloco U, Apartamento 130 – Brasília – Distrito Federal – CEP 70.000-001, o que faz mediante os motivos de fato e fundamentos de direito que em seguida passa a aduzir:


Fundada está a pretensão deduzida na exordial da presente demanda em fatos que, segundo se permite afirmar o autor-reconvindo, seriam imputáveis à ré-reconvinte, gerando, em decorrência, a insuportabilidade da vida em comum e ensejando a dissolução da sociedade conjugal por culpa exclusiva desta.
Dá-se, todavia, como já restou amplamente exposto na contestação a ser oportunamente ofertada, que a reconvinte não adotou posturas e nem praticou atos que possam emprestar fundamento à caracterização de sua responsabilidade pela extinção da afeição e do respeito mútuos que devem orientar toda e qualquer relação matrimonial.
Ocorre, em verdade, que o reconvindo sempre se permitiu em suas relações pessoais adotar postura excessivamente controladora, dominante e agressiva, dentro do lar e fora dele, fato este que será oportunamente apurado. Sempre foi muito ciumento e manteve em relação à mulher uma postura de desconfiança excessiva, embora nenhum motivo tivesse para isso, até porque tem plena ciência de que o tempo da reconvinte sempre foi dedicado às suas atribuições como esposa e dona-de-casa, dando atenção à família. Além disso, via-se submetida ao dever de dar atenção às suas atribuições profissionais, jamais tendo delas se descurado.
O seu tempo, pode-se afirmar sem qualquer dúvida, sempre foi dedicado à família e ao trabalho, o que não pode o reconvindo negar ou refutar. As agressões contínuas e constantes, sempre crescentes, advindas do autor-reconvindo é que vieram a gerar o desgaste a que chegou a relação do casal, acarretando, de forma lamentável, a insuportabilidade da vida em comum. Oportuno notar que o relacionamento passou a enfrentar indesejável deterioração a partir do momento em que decidiu o reconvindo aposentar-se de suas atividades profissionais. A total falta de atividade e de relacionamento social a que se impôs o reconvindo é, em verdade, o único fator de desgaste. Dele nascem as agressões diversas e as atitudes que induzem às desavenças entre ambos, tornando insuportável a vida em comum.
Todo esse quadro veio a agravar-se após a ocorrência dos graves problemas de saúde que passou ele a enfrentar, especialmente após o derrame e as seqüelas que dela naturalmente decorrem. Em casa por todo o tempo, sem qualquer atividade útil ou ocupação do seu tempo, tornou-se bem mais agressivo e passou a perseguir a mulher e a filha do casal, impondo-lhes um intolerável regime de críticas e reprovações constantes.
Busca-se, todavia, caracterizar o autor-reconvindo como uma pessoa idosa e de saúde combalida, afetada por inúmeros e repetidos problemas, de modo a torná-lo vítima de agressões que adviriam exclusivamente da mulher.
Não se compatibilizam à realidade vivida pelo casal as situações apontadas, calcadas em exageros e em inverdades. Ser idoso, acometido de doenças comuns à idade, não significa necessariamente que se tenha qualquer direito ou proteção especial, salvo se vierem a ser demonstradas de forma efetiva as alegadas situações em que estaria o reconvindo submetido a atos agressivos supostamente praticados pela mulher.
A realidade é bem diversa daquela descrita na petição inicial da ação de separação proposta pelo autor-reconvindo. No recinto do lar, não só as agressões à mulher e à filha tornaram-se uma constante, mas ainda se tem que conviver com as queixas de empregadas domésticas noticiando a conduta imprópria por ele adotada em casa, orientadas claramente pelo intuito de assediá-las sexualmente, o que tem motivado repetidos pedidos de dispensa.
Percebe-se, claramente, que o autor-reconvindo demonstra ser detentor de uma personalidade perturbada, excessivamente desconfiada de tudo e de todos, acarretando, por decorrência disso, intolerável agressividade e mania de perseguição, voltada e dirigida especialmente às pessoas de sua relação próxima – mulher e filha.
As ofensas constantemente dirigidas à mulher e o assédio moral contra ela praticado de forma reiterada, ocorria, inclusive, quando ela, assumindo a responsabilidade de realizar as compras para a casa, via-se não só controlada minuto a minuto pelo telefone mas também submetida a xingamentos e agressões verbais impublicáveis por eventual demora. Ao chegar em casa, para coroar a postura de desconfiança, a submetia ao constrangimento constante de ter que prestar contas de tudo o que havia gasto, centavo por centavo.
Tais aspectos servem para evidenciar que o reconvindo – e não a reconvinte – é o responsável pela instabilidade criada no âmbito do lar, acarretando o desgaste da relação entre eles mantida.


POR TODO O EXPOSTO,
vem a reconvinte postular a citação do reconvindo, nos moldes previstos no art. 316 do CPC, para, querendo, ofertar a sua contestação, pena de revelia, devendo ao final ser a reconvenção integralmente acolhida e para o efeito de decretar a dissolução da sociedade conjugal por exclusiva culpa e responsabilidade do autor-reconvindo, com a sua conseqüente condenação nos consectários da sucumbência, como de direito.
Protesta pela produção de provas em direito permitidas, desde logo requerendo o depoimento pessoal do autor-reconvindo, pena de confissão, assim como a oitiva de testemunhas que serão oportunamente arroladas.
Pleiteia seja determinada a realização de perícia médica com vista a determinar as seqüelas sofridas pelo autor-reconvindo em razão da doença noticiada nos autos, bem como determinar os efeitos que disso resultam para a sua personalidade.
Dá à causa o valor de R$ 100,00.

ESPERA DEFERIMENTO.


NOTAS
1 Artigo Meios de Defesa. A Contestação, revista Prática Jurídica nº 16, de 31 de julho de 2003, Brasília, Consulex.

2 CPC – “Art. 315. O réu pode reconvir ao autor do mesmo processo, toda vez que a reconvenção seja conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.”

3 CPC – “Art. 304. É lícito a qualquer das partes argüir, por meio de exceção, a incompetência (art. 112), o impedimento (art. 134) ou a suspeição (art. 135).”

4 Manual de Direito Processual Civil, 2º v., São Paulo, Saraiva, 1985, p. 91.

5 Curso de Prática do Processo, 1931,

v. I, p. 280, nº 101.

6 Curso de Direito Processual Civil, v. I, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 417.

7 “Ao invés de reconvir, o réu pode apresentar ação autônoma contra o autor” (RT 482/59, TJTESP 37/26, 63/81), apud Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil em Vigor – Theotônio Negrão, 32. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 397, 315:6.

8 O parágrafo único do art. 315 do CPC, prescreve que “Não pode o réu, em seu próprio nome, reconvir ao autor, quando este demandar em nome de outrem”. 

9 “Não basta a intimação para manifestar-se sobre a reconvenção; é preciso que o autor seja intimado a contestá-la (JTJ 168/113). O juiz despachara a reconvenção da seguinte forma: ‘Vista da contestação e da reconvenção à parte adversa’. O acórdão entendeu que não bastava; era necessário dizer: ‘Intime-se o autor reconvindo, na pessoa de seu procurador, para contestar a reconvenção, no prazo de 15 dias’.” (Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil em Vigor, Theotônio Negrão, 32. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 398, 316:3a).

10 É correto referir-se a norma à intimação do autor-reconvindo quando, em verdade, cuida-se da formação de uma relação processual específica, embora no bojo dos autos da ação já em andamento? A hipótese é de citação, embora processada em condições peculiares, por meio do advogado constituído pela parte.

11 As ações de procedimento sumário são consideradas dúplices. Por este motivo, não comportam reconvenção; mas, na resposta, o réu poderá “formular pedido, em seu favor, desde que fundado nos mesmos fatos referidos na inicial”. (Theotônio Negrão. Op. cit., p. 367, 278:11).

12 O art. 3º da Lei nº 9.099/95 trata da competência dos Juizados Especiais Cíveis, fixando orientação no sentido de que a ele devem ser dirigidas as causas de menor complexidade, conforme relaciona em incisos desse dispositivo.