quinta-feira, 17 de março de 2011

PRISÃO EM FLAGRANTE X AUTUAÇÃO X RECOLHIMENTO À PRISÃO

Levi Gonçalves Leal

Para efeitos do artigo 304, caput, do Código de Processo Penal, in verbis, “apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e as testemunhas que o acompanharem e interrogará o acusado sobre a imputação que lhe é feita, lavrando-se auto, que será por todos assinado”.
Pela literalidade da norma transcrita, deveras translúcida, infere-se que quando o preso, o qual tenha recebido voz de prisão por supostamente ter cometido uma infração penal (crime e/ou contravenção) e se encontrar em estado de flagrância, for apresentado a autoridade competente, no caso o delegado de polícia de carreira (CF, artigo 144,
§ 4o), deverá essa formalizar a sua autuação.
Portanto, ao receber o preso e as notícias do fato tido como criminoso, o delegado deverá autuá-lo, pois, ao nosso ver, a prisão implica necessariamente na lavratura do auto, para que só assim, a autoridade amealhe elementos concretos, formais e oficiais, e então possa analisá-los com muita cautela, a fim de verificar se é hipótese de recolhimento ou não à prisão.
Por conseguinte, somente após a autuação, no que pese opiniões contrárias, é que deverá o delegado emitir juízo de valor (axiológico) acerca do caso em tela, oportunidade em que analisará a legalidade e/ou legitimidade da prisão.
Acerca do tema vale trazer a lume a balizada opinião do Professor Ismar Estulano Garcia: “Em regra geral, a autoridade deverá sempre autuar em flagrante qualquer pessoa que chegue à delegacia conduzida por outra, seja ou não policial o condutor. Somente depois de lavrado o auto e encapado, quando são conclusos para o despacho posterior à prisão, é que a autoridade apreciará a legalidade ou não do flagrante”.
Cremos que o autor acima aludido utilizou-se da expressão “em regra geral” porque existem algumas exceções à regra inserta no artigo 304, caput, do CPP. É, pois, o que se dessume das chamadas Imunidades Diplomáticas e Parlamentares e também da leitura do § 1º do artigo 22 da Lei nº 6.368/76, o qual prescreve que o laudo preliminar de constatação da natureza da substância entorpecente encontrada em poder do conduzido é condição sem a qual o auto de prisão em flagrante não poderá ser lavrado.
Nesse tocante, vejamos o lapidar magistério do Professor José Armando da Costa: “O laudo prévio de constatação da natureza da substância constitui, nas hipóteses de delitos relacionados com tóxicos, condição sem a qual não poderá ser realizado o auto do flagrante”.
Nessa mesma linha de raciocínio, preceitua o artigo 301 da Lei nº 9.503/97 que “ao condutor de veículo, no caso de acidente de trânsito que resulte vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral socorro àquela”.
O conceituado Arnaldo Rizzardo, ao comentar citado dispositivo, assevera que “mais que um estímulo para chamar à responsabilidade os condutores, introduziu-se uma norma extremamente benéfica”. Contudo, de caráter obrigatória, devendo a autoridade policial aplicá-la em absoluto.
Destarte, no primeiro momento, ao receber o preso conduzido, não dispõe o delegado de discricionariedade ad libitum para escolher entre lavrar o auto e deixar de lavrá-lo. Este preceito é cogente, de caráter obrigatório e vinculante para a autoridade policial. Diferentemente do que ocorre na fase seguinte, pois, segundo reza o § 1o do artigo 304 do CPP, verbis: Lavrado o auto de prisão em flagrante, e havendo fundada suspeita contra o conduzido, a autoridade determinará o seu recolhimento à prisão, se não ocorrer qualquer hipótese de liberdade provisória”.
O provecto Jurista Julio Fabbrini Mirabete comentando mencionado dispositivo assevera que “encerrada a lavratura do auto de prisão em flagrante e resultando das inquirições efetuadas pela autoridade ‘fundada suspeita contra o conduzido’, mandará ela recolhê-lo à prisão. A contrario sensu, se não surgir essa ‘fundada suspeita’ das declarações colhidas no auto, a autoridade deverá relaxar a prisão”.
Tal ponto de vista encontra boa ressonância até mesmo na jurisprudência dos nossos pretórios. Senão, vejamos: TJSP: “Se o exame, ainda que sucinto e superficial do auto de prisão em flagrante, levanta sérias suspeitas quanto à sua legitimidade, impõem-se o relaxamento” (RT 440/317).
Inferência lógica do arrazoado até aqui exposado é que a autuação em flagrante é corolário da prisão, isto é, da voz de prisão dada por quem de direito em desfavor do conduzido. Contudo, nem toda autuação em flagrante delito terá como conseqüência o recolhimento do conduzido à prisão.
Apenas a título ilustrativo, sob essa rubrica, com esteio no artigo 245 do Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei
nº 1.002/69), também nos crimes militares, apresentado o conduzido à autoridade policial militar, esta deverá adotar as mesmas providências incumbidas ao delegado de polícia, salvo, no que diz respeito ao crime previsto no artigo 281 do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69), conforme preceitua o parágrafo único do mesmo dispositivo.
Note-se, via de conseqüência, que após a autuação, o delegado terá, alternativamente, três caminhos a seguir: 1. recolherá o autuado à prisão, caso seja fundada a suspeita contra a sua pessoa, ou seja, esteja ele realmente em estado de flagrância, em conformidade com as normas insculpidas no artigo 302, e incisos, da Lei Adjetiva Penal;
2. em sendo o flagrante legal e/ou legítimo, colocará o autuado em liberdade mediante arbitramento e pagamento da respectiva fiança (artigo 322 do CPP) ou por o mesmo se livrar solto (artigos 321 c/c 309 do CPP), expedindo-se o competente Alvará de Soltura – não se descurando dos casos em que, em vez de se autuar em flagrante delito, lavra-se um Termo Circunstanciado de Ocorrência, em conformidade com o que prevê as Leis nºs 9.099/95 (artigos 69 c/c 61) e 10.259/01 (artigos 1o e 2o); ou
3. relaxará a prisão, caso não seja fundada a suspeita contra o autuado, retificando a voz de prisão anteriormente dada em seu desfavor e colocando-o em imediata liberdade, notadamente nos casos seguintes:
a) se o flagrante tiver sido forjado/preparado; b) se não houver estado de flagrância, embora, haja ou não indícios veementes que o autuado tenha praticado a infração penal; c) se não forem atendidas as condições de procedibilidade para iniciação do inquérito (diga-se, instauração com tombamento, a qual pressupõe autuação e registro da portaria, do auto de prisão em flagrante, da requisição do juiz ou do Ministério Público, da representação ou do requerimento, conforme seja), isto é, representação, nos crimes de alçada pública condicionada (artigo 5o, § 4o, do CPP), e requerimento de quem de direito nos crimes sujeitos a ação privada (artigo 5o, § 5o); d) se preexistir quaisquer das causas de extinção de punibilidade preconizadas no artigo 107 do CP e/ou em outras leis extravagantes (ex:. Leis
nºs 4.729/65, artigo 2o, e 8.137/90, artigo 14, os quais foram repristinados pela Lei
nº 9.249/95, artigo 34), se forem compatíveis com a circunstância flagrancial; e
e) se o fato for atípico.
Aliás, quanto às causas extinguentes da punibilidade, preleciona José Armando da Costa que “em pacífica e remansada jurisprudência, têm os nossos tribunais decidido que a instauração de inquérito policial para apurar fato delituoso com punição já extinta constitui constrangimento ilegal, além de pecar por falta de justa causa”, uma vez que pelo desiderato maior perseguido pela vontade da lei, em tais casos, o Estado não só perde o Direito de Ação como em ultima ratio o próprio direito de punir.
Não se olvidando que em todas as hipóteses acima elencadas o auto de prisão em flagrante lavrado, depois de autuado e registrado, servirá como peça inaugural do respectivo inquérito policial, salvo em relação ao caso de as condições de procedibilidade não tiverem sido atendidas, se já extinta a punibilidade e/ou se o fato for atípico, circunstâncias estas que autorizarão o arquivamento do auto pelo próprio delegado, já que o mesmo não foi ainda autuado e registrado, ou seja, o inquérito ainda não foi formalmente instaurado. Agregue-se, neste passo, que tais circunstâncias são deformidades substanciais que reluzem de modo incisivo no campo do Direito Penal Material.
A priori, é de se esperar que alguns estudiosos questionem a legitimidade do delegado de polícia para relaxar uma prisão em flagrante depois de devidamente autuado o conduzido, contudo, como já dissemos em linhas transatas, conforme preceitua a verba legis do artigo 304 do CPP, tal fato é insofismavelmente crível, principalmente levando-se em conta os Princípios Constitucionais de Garantias Individuais, bem como pelo fato de que, enquanto não comunicada a prisão à autoridade judicial, é o delegado de polícia responsável pela mesma.
Parafraseando o Professor José Armando da Costa: “O flagrante não substitui o inquérito, mas sim o inaugura”, depois de devidamente tombado.
Rebatendo ainda mais, é que, dentre outros, revela em acórdão o egrégio Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: “E não autorizando os elementos informativos do flagrante a ilação de fundada suspeita para a prisão do paciente, impõe-se o seu relaxamento” (RT 547/395).
Nesse mesmo diapasão, o Doutor Carlos Alberto Marchi de Queiroz, assim pontifica: “O relaxamento de flagrante inafiançável decorrente de prisão em flagrante, plenamente possível, ainda que raro e veementemente combatido pela doutrina, materializa-se através de expedição de alvará de soltura firmado pela autoridade policial, verdadeiro contraponto da prisão-captura”.
De sorte que a decisão proferida pelo delegado acerca da autuação, recolhendo ou não o conduzido à prisão, deverá sempre ser fundamentada, expondo-se os seus motivos fáticos e jurídicos, embora de forma sucinta, pelas razões a seguir aduzidas: 1o) o que está em jogo é um dos direitos subjetivos mais caro aos homens porque mais identificado com o seu status dignitatis, qual seja, o jus libertatis; e 2o) dará transparência ao seu ato, fato este relevante em um provável futuro questionamento acerca do porquê determinado preso foi recolhido à prisão ou posto em liberdade. Ad perpetuam rei memoriam.
É incontroverso que igual procedimento deverá ser adotado pelo delegado de polícia nas apreensões de adolescentes em flagrante de ato infracional, sendo que tal asserção é diáfana nos artigos 172 e 173 c/c 152, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).
Ad argumentandum tantum, cite-se, por oportuno, o comentário de Jurandir Norberto Marçura, do Ministério Público/São Paulo, ao debruçar-se sobre o artigo 172 do ECA: “O dispositivo enfocado trata da apreensão de adolescente em razão de flagrante de ato infracional, aplicando-se à espécie as normas do Código de Processo Penal pertinentes à prisão em flagrante, consoante preceito expresso no artigo 152”.
Mais adiante, desta vez comentando o artigo 173 do ECA, assim preleciona o Douto Membro do Parquet: “Verificada a prática de ato infracional por adolescente e consumada a apreensão em flagrante, a autoridade policial deverá distinguir, inicialmente, se se trata ou não de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa. Em caso afirmativo, será obrigatória a lavratura do auto de apreensão... Se não houver cometimento de violência ou grave ameaça será facultativa a lavratura do auto de apreensão, devendo, neste caso, ser substituído por boletim de ocorrência circunstanciado, contendo a descrição do fato”.
Por final, o ilustre expositor arremata o seu entendimento certificando que “verificando a autoridade policial que a conduta imputada ao adolescente não constitui ato infracional, deverá ordenar sua imediata liberação, sob pena de incidir na figura típica do artigo 234”.
Portanto, a praxe rotineira empregada por alguns delegados, os quais decidem se a prisão do conduzido foi legal ou ilegal apenas verbalmente, sem tomar por termo nenhum testigo, não é nada recomendável em face do Estado democrático de Direito em que vivemos, sob o império e a égide da lei, no qual, em linha de regra, estamos sujeitos a “prestar contas”, tanto ao policial militar que conduziu e/ou que deu voz de prisão ao conduzido, como ao Ministério Público, fiscal da lei (artigo 127 da CF) e responsável pelo controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, da CF), bem assim ao Poder Judiciário e/ou ao Órgão Correcional da própria instituição, enfim, à própria sociedade, pois, ubi societas ibi jus.
Ainda no dizer do Professor Ismar Estulano Garcia “excesso de cautelas no cumprimento de normas legais nunca traz prejuízos. Pelo contrário, significa credibilidade nos serviços executados”.
Razão por que a fundamentação/motivação dos atos praticados pelo delegado, principalmente no que tange a autuação em flagrante delito, assim como se dá na Lei Antitóxicos (Lei nº 6.368/76, artigo 37, parágrafo único) deve revestir-se de características de conditio sine qua non.
O delegado de polícia é um profissional do Direito, tanto quanto o juiz, o advogado e o membro do Ministério Público, sendo oriundos dos mesmos bancos escolares das Faculdades e Universidades de Direito, jamais um profissional autômato, e como operador do Direito deve se portar e exercer o seu múnus.
Sendo assim, concluímos afirmando que a prisão em flagrante é gênero do qual a voz de prisão, a autuação em flagrante e o recolhimento à prisão são, de certa forma, espécies, e como tal deve ser entendida e estudada.
BIBLIOGRAFIA
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2 comentários:

  1. Foi muito bom me deparar com esse artigo que escrevi no ano de 2004. Talvez eu tenha sido um dos primeiros delegados de polícia a aplicá-lo, in absoluto, no dia-a-dia, e isso desde que assumi o meu cargo no ano de 2000. Parabens pelo blog. Abçs.

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  2. Eu que agradeço tamanha contribuiçao, espero poder contar com outros artigos do Doutor.
    Abraços

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