DO ABUSO DE DIREITO
A doutrina pátria, após a Constituição Federal de 1988, à luz da construção doutrinária e pesquisa no ordenamento jurídico de outros países, principalmente da Europa, já informava que, além do ato ilícito civil traduzido no Código Civil de 1916, havia o “abuso de direito”, que, em sua essência, consistia num exercício irregular de um direito reconhecido, remontando sua origem ao Direito Romano, embora nesta época não tenha sido construída a teoria sobre o instituto, como de forma singela ocorreu na Idade Média e mais robustamente a partir do início do século XX.
O leading case que consagrou o instituto é o caso Clement Bayard, julgado pela Corte de Amiens. Neste célebre caso, destacado nas doutrinas pertinentes ao tema, o proprietário confinante de um campo de pouso de dirigíveis ergueu uma injustificada construção de torres com lanças de ferro em suas extremidades que passariam a representar perigo para as aeronaves que ali aterrissavam ao lado. Embora tenha construído em sua área de propriedade e sob autorização estatal, e reconhecida a licitude da construção em relação às autorizações dadas pelos órgãos competentes, o Tribunal declarou como sendo abusiva a conduta pelo exercício anormal e despropositado do direito de propriedade.
Nota-se que não houve declaração de ilicitude num primeiro momento, mas do uso abusivo de um direito que, de igual forma, por este irregular exercício gerou os mesmos efeitos decorrentes dos atos ilícitos.
Em terras tupiniquins, foi com o advento do Código Civil de 2002 que se deu a confirmação legislada de toda teoria doutrinária há muito defendida. Em seu art. 187, que, complementarmente, estendeu a já larga abrangência do art. 186, clássico conceito do ato ilícito. In verbis:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” (grifo nosso)
O mestre Sílvio de Salvo Venosa comenta o novel artigo como sendo o:
“(...) fato de usar de um poder, de uma faculdade, de um direito ou mesmo de uma coisa, além do razoavelmente o Direito e a sociedade permitem (...) O titular de prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nesta situação, o ato é contrário ao direito e ocasiona responsabilidade.” (Direito Civil. v. 1. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, pp. 603 e 604)
Neste sentido, a Jornada de Direito Civil do STJ, em seu Enunciado nº 37, informou que:
“(...) a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”
Consagrando a eficácia do abuso de direito como sendo TAMBÉM ato ilícito e não uma forma subsidiária ou um quase-ato ilícito, o Código Civil arrolou o art. 187 (abuso de direito) em conjunto com art. 186 (o clássico ato ilícito) como fundamento para a responsabilidade civil. Vejamos:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
A jurisprudência, neste sentido reconhece:
“Nosso ordenamento coíbe o abuso de direito, ou seja, o desvio no exercício do direito, de modo a causar dano a outrem, nos termos do art. 187 do CC/02. Assim, considerando a obrigação assumida, (...) verifica-se que os recorridos exerceram de forma abusiva o seu direito (...).” (REsp nº 935474/RJ. Recurso Especial nº 2004/0102491-0. Ministro Ari Pargendler. DJe 16.09.08)
DO CHEQUE, SEU PROTESTO E SUSTAÇÃO – ANÁLISE DA LEI DO CHEQUE E DA PRÁTICA COMERCIAL
A Lei do Cheque (Lei nº 7.357/85), no tocante ao sistema de pagamento e apresentação do título, bem como à forma de efetivação do crédito quando ele é inadimplido ou contra-ordenado, informa que:
“Art. 47. Pode o portador promover a execução do cheque:
I – contra o emitente e seu avalista;
II – contra os endossantes e seus avalistas, se o cheque é apresentado em tempo hábil e a recusa do pagamento é comprovada pelo protesto ou por declaração do sacado, escrita e datada sobre o cheque, com indicação do dia de apresentação, ou, ainda, por declaração escrita e datada por câmara de compensação.
§ 1º Qualquer das declarações previstas neste artigo dispensa o protesto e produz os efeitos deste.”
Nota-se que o credor/portador do título cambiário tem a opção de promover o protesto ou o sistema de compensação bancária. Por praticidade e economia (de tempo e dinheiro), opta-se sempre pela última forma, já que inviabilizaria o uso do cheque se a lei restringisse apenas a primeira modalidade (protesto cambiário). A lei informou “ou”, logo, deve-se optar entre uma e outra forma.
Em esclarecimento a este entendimento, o parágrafo primeiro do art. 47 da Lei do Cheque ratifica que “Qualquer das declarações previstas neste artigo dispensa o protesto e produz os efeitos deste”, ou seja, havendo a declaração por parte do sacado (banco ou instituição financeira) que o título não será pago pois fora “sustado”, não pode se promover o protesto do título, já que a declaração “dispensa o protesto”, como dita a lei.
Vários motivos ensejam a sustação ou contraordem de um cheque: roubo, perda do talão, desacordo comercial, entre outras. Salvo nos casos de notícia falsa de crime, que é um ilícito penal, aqueles que sustam o cheque estão de boa-fé e pagam o título, já que, ao terem sido, por exemplo, furtadas, sustaram todo o talão, por isto, quando o portador leva um título com sua assinatura, não há oposição. Ocorre que a análise do abuso de direito nesta seara se dá nos casos de cheques sustados por “desacordo comercial”, que, não raro casos, trata-se de subterfúgio para alguns inadimplentes (por vezes, contumazes) se verem livres da indesejada inscrição na SERASA decorrente da devolução do cheque por insuficiência de fundos.
Explico. A figura do “cheque sustado” ou “contra-ordem”1 promovido pelo emitente, geralmente por motivo alegado como “desacordo comercial”, promove a devolução do título sem pagamento ao credor/depositante, que, ao contrário de outros motivos de devolução do título sem pagamento (como insuficiência de fundos, por exemplo), não acarreta a pecha legal de mal pagador, já que seu nome não é inscrito na SERASA.
Assim, é hábito daqueles que não querem pagar uma dívida ou mesmo quando entendem que não a possua “sustar” o cheque a fim de que este não seja pago e seu nome não tenha qualquer restrição junto ao órgão da SERASA.
O credor, por sua vez, vivencia, nesta situação, quando ciente de que a dívida existe, e que esta é uma manobra fraudulenta (porém, legal) do emitente, uma condição de impotência e frustração.
Não é incomum, portanto, o credor, no intuito de buscar efetivar seu crédito, levar o título a protesto a fim de obrigar ao emitente o pagamento da dívida, sob pena de ter seu nome inscrito na SERASA, consequência dos títulos protestados e não pagos.
Qual motivo de levar a protesto título que já passou pelo sistema de compensação bancária e este informou que não haverá pagamento? Numa resposta fulcrada no dia a dia ou na visão do credor: “Fazer o emitente pagar o título”. Numa análise jurídica do ato, porém, não há dúvidas que há claro abuso de direito.
DO ABUSO DE DIREITO EM CASO DE PROTESTO DE CHEQUE “SUSTADO” POR DESACORDO COMERCIAL (ALÍNEA 21)
Como vislumbrado, o cheque pode ser protestado OU apresentado para compensação. Quando ocorre a sustação do cheque, o banco ou instituição financeira. por meio de ato próprio, certifica que o título não será pago, pois fora sustado. Esta declaração equivalente ao protesto põe termo à dúvida sobre a mora do título.
O protesto realizado após declaração já emitida pelo banco, embora na regra dos casos seja com o fim nobre de efetivar a cobrança do crédito, consiste basicamente em forma de incluir o nome do devedor na SERASA, pois, juridicamente falando, as únicas forma de efetivar o crédito contra o emitente em casos assim é por meio da mediação ou de forma coercitiva-judicial, por meio da ação de execução.
Como há morosa prestação judicial, não é raro ver credores fugindo da tutela do Estado e buscando, na prática acima narrada (protestar título já certificado como não será pago), uma alternativa para efetivação do crédito e de seu direito.
O objetivo deste artigo não é auxiliar o mau pagador, mas buscar evitar, ao bom pagador que usou devidamente o instituto de “sustação” de cheque, a coação de ter seu nome inscrito na SERASA, em não pagando o título quando levado a protesto.
Como a declaração do banco ou instituição financeira para estes casos equivale ao protesto, sendo a lei expressa quanto à opção entre um ou outro ato, proibindo, consequentemente, ambos, sem sombra de dúvidas protestar cheque já “sustado” não apenas consiste em abuso de direito, por ter o credor excedido “manifestamente os limites impostos” pela lei, em remissão ao texto do art. 187 do Código Civil, mas torna-se claramente protesto indevido.
Por ambos motivos, abuso de direito e protesto indevido, há surgimento de responsabilidade civil, obrigando o credor, em uma inversão de papéis, a indenizar o devedor/emitente do título no pagamento de todos danos patrimoniais advindos deste ato, como os extrapatrimoniais, se o nome deste for incluso na SERASA.
São julgados neste sentido:
“O protesto de cheque sustado e prescrito, ato abusivo, e a inclusão do nome da autora em cadastros restritivos de crédito têm o condão de causar abalo em sua honra com tal cobrança. Considera-se dano moral a dor subjetiva, dor interior que, fugindo à normalidade do dia a dia do homem médio, venha a causar ruptura em seu equilíbrio emocional, interferindo intensamente em seu bem estar. A parte ré não se preocupou em pesquisar o porquê do não pagamento do cheque, já que se o tivesse feito teria constatado que houve sustação do cheque protestado, razão pela qual o protesto do título configura abuso de direito da parte ré, que enseja reparação à autora.” (TJRJ. 2009.001.01512. Desª. Maria Augusta Vaz. Julgamento: 17.02.09)
“O protesto não era ato obrigatório para o ajuizamento de ação contra o emitente do título (art. 47, caput,da Lei nº 7.357/85) ou contra o endossante porquanto a declaração de não pagamento aposta pelo banco sacado produz os mesmos efeitos do protesto (art. 47, § 1º, Lei nº 7.357/85). Era possível ao credor a cobrança de seu crédito por ação monitória. Aquilo que era inicialmente um exercício regular de direito transmudou-se em abuso de direito, gerando, como corolário, o dever de reparar os danos materiais e morais causados ao autor.” (TJRJ. 2008.001.38497. Des. Roberto de Abreu e Silva. Julgamento: 23.09.08)
“Tendo a 2ª Ré ciência do desfazimento do negócio jurídico celebrado entre a Autora e a 1ª Ré, o que gerou a sustação do cheque emitido pela primeira em favor da segunda, considera-se manifestamente abusivo o protesto levado a efeito pela Recorrente. 2) Cabível a compensação de danos morais reclamada por pessoa jurídica, em razão de ofensa a sua honra objetiva.” (TJRJ. 2008.001.16381. JDS. Des. Werson Rego. Julgamento: 09.09.08)
“Ação declaratória de nulidade de protesto com pedido de indenização por danos morais – Aponte a protesto sustado – Irrelevância dano moral caracterizado – Indenização cabível – Adequação dos ônus sucumbenciais.” (TJSC. AC nº 2007.018939-0. Relator: Carstens Köhler. Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Comercial. Data: 05.05.08)
Ademais, quando ocorre o protesto de cheque sustado geralmente já transcorrera o prazo de apresentação (30 dias – da praça; 60 dias – fora da praça de pagamento), e isso, por si só, já gera dever de indenizar, haja visto o protesto indevido ante a extemporaneidade. É o julgado:
“Protesto cambial. Cheque. Nulidade de apontamento. Sustação. Danos morais. (...) Protesto. Intempestividade. Danos morais (...). III – O protesto de cheque, para ser válido e eficaz, há que ser feito na praça de pagamento ou no lugar de domicílio do emitente, antes de exaurido, entretanto, o prazo em lei previsto para a sua apresentação ao sacado. Escoado esse prazo, o protesto de cheque faz-se indevido. IV – Indevido o protesto de cheque, gerado está para o credor a obrigação irrecusável de prestar ao emitente a correspondente reparação, porquanto irrefutavelmente caracterizada situação típica de danos morais. O direito a esse ressarcimento não condiciona-se à prova da causação de efetivos prejuízos, eis que estes são potenciais e, portanto, presumidos (...)” (Apelação Cível
nº 2002.018019-5, de Canoinhas. Rel. Des. Trindade dos Santos. Segunda Câmara de Direito Comercial. j. 17.03.05)
Lembrando que, no tocante ao simples fato de ser indevido o protesto (por abuso de direito ou extemporaneidade), há o dever objetivo e presumido de indenizar:
“A mera apresentação de título indevido para protesto, ainda que não levado a efeito, gera indenização por danos morais, independente da efetiva comprovação de prejuízo.” (Apelação Cível nº 2004.033443-9. Rel. Des. Edson Ubaldo. j. 12.04.07)
“O protesto indevido de título gera direito à indenização por dano moral, independentemente da prova objetiva do abalo à honra e à reputação sofrida pela autora, que se permite, na hipótese, facilmente presumir, gerando direito a ressarcimento que deve, de outro lado, ser fixado sem excessos, evitando-se enriquecimento sem causa da parte atingida pelo ato ilícito.” (REsp nº 431220/MT. Relator Min. Aldir Passarinho Junior. DJU 20.10.03)
Por fim, por ser indevido o protesto de cheque sustado, poder-se-ia imputar alguma responsabilidade ao cartório que promoveu tal ato, porém, já julgou-se tal matéria no seguinte sentido:
“Responsabilidade civil – Ação proposta contra cartório de protesto de títulos – Protesto de cheque sustado pelo emitente (alínea 21) – Possibilidade – Inexistência de ato ilícito – Indenização indevida – Correção da sentença em sua conclusão – Ação improcedente. (...) – Dispõe o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça, que deve ser obedecido por todos os Notários e Registradores: ‘Art. 977. O cheque a ser apontado deverá conter a prova de apresentação ao banco sacado e o motivo da recusa do pagamento, salvo se o protesto tiver por fim instruir medidas pleiteadas contra o estabelecimento de crédito. Parágrafo único. É vedado o apontamento de cheques quando estes tiverem sido devolvidos pelo estabelecimento bancário sacado por motivo de furto, roubo ou extravio das folhas ou dos talonários, nos casos dos motivos 20, 25, 28 e 30, da Circular nº 2.655, de 17 de janeiro de 1996, COMPE 96/45 e da Circular nº 3.050, de 2 de agosto de 2001, do Banco Central do Brasil, desde que os títulos não tenham circulado por meio de endosso, nem estejam garantidos por aval’. (...) Ora, o Oficial de Protestos tomou todas as precauções que lhe competia e, sendo o motivo da devolução do cheque, a Alínea 21 (Devolução por Cheque Sustado), não havia como recusar a efetivação do protesto.” (TJSC. AC nº 2003001726-7. Relator: Cesar Abreu. Órgão Julgador: Segunda Câmara de Direito Público. Data: 08.04.08)
CONCLUSÃO
Embora bastante técnico, o tema do protesto de cheque sustado demanda importante reflexão ante sua natureza prática.
Há mais de quatro anos, o Professor e jurista Cláudio Scarpeta Borges, no III Congresso Nacional de Direito de Balneário Camboriú, em palestra ministrada (bem como nas aulas e conversas prazerosamente realizadas com esta autoridade sobre o assunto), já advertiu sobre a possibilidade de haver condenação por danos morais decorrente de protesto de cheque sustado por desacordo comercial (alínea 21), já que, ao seu ver, tratava-se de abuso de direito. Com as recentes decisões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (acima citadas), bem como de outros Tribunais, o que era um aviso doutrinário se tornara realidade.
Este artigo não se propõe a desenvolver uma análise temático-doutrinária em prol do devedor ou minar meios de efetivação do crédito, mas sim informar, aos credores, que o meio hábil para tal efetivação se dá por via judicial (ações executivas) ou extrajudicial, por intermédio, por exemplo, da mediação. Protestar cheque com o intuito de inscrever o nome do emitente ou demais coobrigados na SERASA, a fim de forçar uma composição, é, por força dos argumentos acima, temerário, pondo em risco o crédito decorrente daquele título que, indevidamente protestado, causará imenso prejuízo ao credor, o qual terá que, talvez, compensar o valor do título no valor a ser pago em indenização por danos morais ao, pasmem, devedor da cártula!
Eis o aviso.
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