segunda-feira, 21 de março de 2011

Prescrição virtual ou antecipada

PRESCRIÇÃO VIRTUAL OU ANTECIPADA

A prescrição tem importância real e concreta para o Direito porque guarda com esta ciência íntima relação de garantia individual e desenvolvimento social. No Direito Penal, sua existência e segurança são aceitas de forma irrestrita, operando-se para extinguir a punibilidade antes ou depois da sentença penal condenatória.

No entanto, surgiu, recentemente, um novo instituto denominado prescrição virtual ou antecipada da pena em perspectiva ou projetada, que tem sido alvo de várias discussões e discórdias doutrinárias e jurisprudenciais, o que justifica e estimula seu estudo mais aprofundado.
As regras da prescrição estão ditadas pelo próprio Código Penal. Estão, destarte, estabelecidos os prazos prescricionais correspondentes às penas e as subespécies de prescrição. Dentre elas a prescrição da pretensão punitiva que incide sobre a pretensão estatal de punir um criminoso em face ao transcurso de determinado prazo sem o efetivo exercício deste direito. Esta prescrição é regulada, em geral, pela pena em abstrato, mas pode, excepcionalmente ser regulada pela pena em concreto, isto é, pela pena cominada e decorrente de uma sentença condenatória. Neste caso, a verificação da fluência daquele prazo pode verificar-se em data anterior a do recebimento da peça acusatória inicial ou do proferimento da sentença condenatória. É a dita prescrição retroativa prevista no artigo 110, § 2º, do CP.
Ocorre que o sistema brasileiro de aplicação de pena não tem caráter totalmente subjetivo e de livre apreciação do juiz, vale dizer, a pena é cominada sempre tendo em vista questões e dados objetivos acerca do crime, do autor e da vítima. As regras de atribuição da reprimenda são pautadas em critérios ditados pelo próprio Código Penal em seus dispositivos legais. Deste modo, não pode o juiz, ao proferir uma sentença condenatória, aplicar qualquer pena de forma indistinta, sob risco de cometer abuso e ilegal discricionariedade.
Soma-se a isso ainda a dificuldade de a pena de qualquer infração ultrapassar o mínimo legal. Para tanto, são necessárias uma série de fatores seguros e comprovados que possam realmente majorar a pena além do mínimo legal. A fixação da pena no mínimo legal é verdadeiramente um direito de qualquer condenado, ou seja, apesar de não previsto em lei, a aplicação de pena privativa de liberdade no grau máximo estabelecido exige compulsória e completa conjugação de situações desfavoráveis a ele.
Ora, com dados tão sólidos, seguros e concretos pode-se calcular e balizar qual a pena, dependendo da existência daqueles dados majorantes, é esperada quando do proferimento da sentença, ou pelo menos o seu quantum, apto a ser geralmente o da pena mínima.
Deste modo, por vezes é perfeitamente previsível que num caso concreto a pena aplicada, na hipótese de condenação de um determinado fato delituoso seja àquela do mínimo legal e que, ao proferir a sentença condenatória, o juiz declarará extinta a punibilidade do agente por ter ocorrido a prescrição retroativa. Vislumbra-se assim, de forma inevitável e antecipada, que, no caso de sentença condenatória, ocorrerá a prescrição retroativa prevista no artigo 110, § 2º, do Código Penal.
Ressalte-se que a sentença que reconhece a prescrição retroativa não gera qualquer conseqüência e tem efeitos amplos, não permitindo a caracterização de qualquer responsabilidade penal, de maus antecedentes, reincidência e afastando assim todos os efeitos, principais ou secundários, penais ou extrapenais da condenação. O acusado volta a ser tecnicamente primário e sem qualquer registro contra seus antecedentes criminais1. Conclui-se, deste modo, que a ação penal será inútil e desnecessária.
Ora, qualquer ação que se mostra desnecessária e inútil porque a visada sanção jamais será efetivamente aplicada, ou porque este fim não poderá mais ser materialmente realizado porque, ao sentenciar e aplicar concretamente a reprimenda, o direito de punir pulverizar-se-á no tempo, carece de interesse de agir, uma vez que está fadada a não produzir nada. Logo, deve esta ação ser extinta sem julgamento do mérito por ser carecedora de condição fundamental da ação.
Eis a prescrição virtual ou antecipada da pena em perspectiva ou projetada. Nota-se que, apesar do nome prescrição virtual, trata-se, na verdade, de um caso de falta de interesse de agir ou justa causa. Consiste, então, resumidamente, no seguinte exercício mental: Primeiro vislumbra-se a pena que será aplicada ao caso concreto sopesando os dados de atribuição de pena, daí a denominação prescrição da pena em perspectiva. Depois se constata de forma antecipada a inevitável ocorrência da prescrição retroativa ao final da demanda. E, finalmente, percebendo a desnecessidade e inutilidade da ação penal, conclui-se pela inexistência do interesse de agir.
Várias vantagens também podem ser apontadas do acolhimento e reconhecimento da prescrição virtual como a celeridade processual ou combate a morosidade da justiça, economia das atividades jurisdicionais em prestígio da boa utilização do dinheiro público, preservação do prestígio e imagem da justiça pública ou atenção a processos úteis em detrimento daqueles que serão efetivamente atingidos pela prescrição, etc.
A criação da prescrição virtual ou antecipada da pena em perspectiva é recente e ainda não se encontra comentada pela maioria da doutrina penal e processual penal brasileira. Os poucos que a comentam ainda se mostram tímidos sobre o assunto. Outra parte da doutrina levanta algumas objeções ao seu reconhecimento, o que nos leva a fazer um estudo detalhado sobre elas.
Insta destacar que procuraremos sempre rebater os argumentos contrários à prescrição virtual, como meio de proporcionar uma melhor reflexão sobre ela.
A primeira alegação contrária à prescrição antecipada é o desrespeito ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Este princípio, vigente no sistema processual penal brasileiro, ensina que a ação penal não pode ser exercida de forma aleatória e, desde que formada a opinio delict, não pode ela ser preterida por critérios de oportunidade e conveniência. Há, portanto, a obrigatoriedade do Ministério Público a de exercitar a ação penal, competindo ao juiz velar por este exercício compulsório.
Não acreditamos que este posicionamento encontra força suficiente para impedir o reconhecimento da prescrição antecipada. O princípio, realmente, subsiste nas hipóteses em que a ação penal pode ser exercida normalmente. Uma vez possível seu regular exercício e formada a opinio delict, exsurge e vigora o dito princípio. Todavia, antes da análise da opinio delict, que se confunde com o mérito, deve-se analisar outros requisitos para o exercício regular da ação, quais sejam, as condições da ação. Ausente uma condição da ação, afastada está a obrigatoriedade da ação e do dever de agir. Não fosse assim, mesmo diante de ilegitimidade de partes, por exemplo, a ação deveria ser absurdamente ajuizada, robotizando e limitando o seu exercício à obediência de uma regra formal.
Soma-se a isso o dever do promotor, do juiz e dos advogados de velarem pelas condições da ação e dos pressupostos processuais, fiscalizando deste modo o desenvolvimento válido da pretensão acusatória desde seu nascedouro.
Outro ponto de resistência à prescrição em perspectiva – diz outra escola contrária –, é a sua falta de previsão legal em nosso ordenamento jurídico. Este é o fundamento utilizado pela maioria das jurisprudências contrárias à prescrição virtual. Neste sentido:


“Penal. Processual. Denúncia. Inépcia. Dolo específico. Dilação probatória. Prescrição antecipada. Habeas corpus. Recurso.
Não há que se falar em inépcia da denúncia quando esta preenche os requisitos do Código de Processo Penal, art. 41, garantindo, ao acusado, o direito à ampla defesa. O habeas corpus não se presta ao exame de provas, matéria afeta ao contraditório próprio da instrução criminal. Nosso ordenamento jurídico-processual não contempla a prescrição por antecipação. Pretensão recursal que carece de amparo legal. Recurso a que se nega provimento”2 (grifei).

E ainda:
“Recurso de habeas corpus – pretensão de que seja extinta a Punibilidade do paciente, pela chamada ‘prescrição antecipada’, levando-se em conta a possível pena a ser aplicada – tese repelida nesta corte. Não tem qualquer amparo legal, extinguir-se a punibilidade de alguém, com prognóstico da pena a ser eventualmente aplicada. No caso, há de se levar em conta o máximo da pena abstratamente cominada, situação que não ampara o paciente. Recurso improvido.”3 (grifei).

Realmente o nosso Código Penal e nosso Código de Processo Penal não contemplam de forma expressa a prescrição virtual ou antecipada da pena em perspectiva. Não há nenhum dispositivo que reze: “A prescrição retroativa antecipada retira a justa causa e o interesse de agir da ação penal, impossibilitando o seu exercício ou prosseguimento”. Não existe qualquer norma parecida ou análoga. No entanto, não é a falta de previsão expressa que vai afastar a sua constatação e sua existência.
Aliás, esse entendimento decorre de certa confusão ou desconhecimento mais aprofundados da prescrição virtual com que se debatem certos operadores do Direito. Como já foi dito anteriormente, apesar do nome deste instituto ser prescrição virtual ou antecipada, não há que se falar em extinção da punibilidade. Seu fundamento é a falta de interesse de agir ou da justa causa. Uma vez entendida esta diferença, não se pode alegar falta de amparo legal para o seu prestígio, pois que o artigo 43, inciso III, do Código de Processo Penal reza que a denúncia ou queixa será rejeitada quando for manifesta a ilegitimidade da parte, ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.
Deste modo, ausente o interesse de agir – saliente-se, fundamento da prescrição virtual –, a peça acusatória inicial deverá ser rejeitada, eis que inexiste uma das condições para o exercício da ação.
Soma-se a isso a previsão textual da mesma lei adjetiva que prevê, em seu artigo 3º, a admissibilidade de interpretações extensiva e analógica da lei processual penal. Ora, o Código de Processo Civil prevê de forma expressa a carência da ação por falta de interesse de agir. Como é cabível a analogia e a interpretação extensiva à lei processual penal, então é possível a carência da ação penal pelo mesmo fundamento ali esposado.Uma diversa escola contrária à prescrição em perspectiva ensina que sua utilização e prestígio violam o princípio da presunção da inocência. Este princípio assegura a qualquer réu o direito de ter um provimento jurisdicional que lhe reconheça inculpabilidade, e a prescrição virtual só ocorre reconhecendo a condenação do acusado.
Também não merece, ao nosso ver, total guarida este entendimento. Com efeito, a sentença que virtualmente se trabalha para reconhecer-se a prescrição antecipada é a condenatória, mas isso não implica dizer que houve seu real reconhecimento. Não há que se falar em condenação e posterior extinção da punibilidade. Ao contrário, não há que se falar nem mesmo em sentença, muito menos em sentença condenatória. A carência da ação, como dito no capítulo pertinente, impossibilita o ajuizamento de qualquer ação e a realização da persecução penal.
Nota-se destarte, que sua análise é anterior a qualquer outra e, se manifesta, inviabiliza qualquer direito de ação, seja do autor, seja do réu. Não se pode exigir o exercício e prosseguimento de uma ação carente de suas condições sob o argumento de que o réu tem direito a uma sentença absolutória, sob pena de eterno desvio ou desnecessidade das condições da ação. Fosse assim, não precisaríamos mais das condições da ação, eis que é interesse do Estado a solução da lide instaurada. No entanto, as condições da ação existem como requisitos mínimos necessários ao exercício deste direito. O princípio então só subsiste quando uma ação é devidamente e validamente instaurada, o que torna lícito o reconhecimento da prescrição virtual.
Uma distinta corrente entende incabível a prescrição antecipada porque a previsão da pena revela análise de mérito sem o devido processo legal, princípio mundialmente consagrado, e sem o devido contraditório, o que é vedado no processo penal brasileiro, concluindo que a análise do interesse de agir não pode ser profunda e confundir-se com esta análise de mérito.
Realmente, assiste razão a esta corrente quando afirma que há apreciação de mérito para a aferição de pena. Contudo, esta análise é meramente superficial, isto é, sem grandes reflexões e ponderações. Ademais, qualquer arquivamento de inquérito policial resulta de uma apreciação superficial das provas ali coligidas, o que torna válido este procedimento para a estimativa da pena em perspectiva. Não há violação aos princípios susomencionados porque não houve também ação penal intentada e, como se sabe, estes princípios só vigoram na ação propriamente dita.
Soma-se a isso o sistema rígido e ditatorial de implementação de pena a que está adstrito o juiz ao proferir qualquer sentença condenatória. Aqueles dados objetivos em que o magistrado deve pautar-se são, por vezes, tão seguros que se vislumbra facilmente qual a pena que ele cominará ao caso concreto.
Com relação a exame do interesse de agir que se confunde com o julgamento de mérito, também assiste razão a esta corrente. É justamente do estudo do mérito da ação que se flagra a ausência do interesse de agir. Afinal, para se perceber que um provimento jurisdicional é inútil devemos analisar a causa de pedir e o pedido da ação. Não há como afastar certa apreciação subjetiva do mérito de que se reveste o interesse de agir, caso contrário, não poderíamos nunca conjeturar a impossibilidade ou a inadequação de uma ação.
Desta última corrente acima tratada decorre talvez a questão mais tormentosa e realmente plausível contra a prescrição virtual. Afirmam alguns que a prescrição antecipada mostra-se desaconselhável em face da ocorrência da mutatio libelli prevista no artigo 384, parágrafo único, isto porque a pena antecipadamente calculada (em perspectiva) pode não ser a efetivamente aplicada ante a possibilidade da alteração para crime mais grave ou com pena superior àquela inicialmente vislumbrada, conforme preceitua o dispositivo supracitado, in verbis:
“Art. 384. (...)
Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe a aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.”
Deste modo, a denúncia, embasada corretamente num inquérito policial, pode descrever como fato delituoso um furto. Entretanto, a instrução processual pode revelar que a subtração ocorrera mediante ameaça, transmudando assim o crime de furto para o de roubo, cuja pena é maior do que a daquele.
Em que pese à pertinência deste argumento contrário à prescrição virtual, entendemos não ser ele forte o suficiente para o seu afastamento. Senão, vejamos.
Como explicado anteriormente, a prescrição em perspectiva pode ser enxergada antes do início da ação penal, bem como durante o seu curso.
Se constatada antes de iniciada a ação penal, ou seja, ainda na fase inquisitiva, a questão levantada mostra-se menos trabalhosa porque o arquivamento de inquérito policial sempre deve possuir a ressalva do artigo 18 do Código de Processo Penal, que permite o prosseguimento de novas pesquisas pela autoridade policial, se de outras provas tiver notícias.
Essa providência praticamente elimina qualquer óbice a contemplação da prescrição virtual, visto que qualquer nova prova que altere a capitulação do delito e, conseqüentemente, a sua pena ensejadora do cálculo prescricional servirá de base para uma nova análise e apreciação do caso, resultando em novo arquivamento do inquérito policial ou no oferecimento de denúncia. Ademais, este argumento poderia ser levantado em todos os arquivamentos de inquérito policial eis que a probabilidade do surgimento de novas provas é uma constante possibilidade. Foi exatamente para dar acuidade a estes casos que o legislador editou o dispositivo citado, como meio de contornar esta situação nova.
A mesma solução, todavia, não se mostra tão clara com relação à ocorrência da prescrição antecipada durante a ação penal. Este artigo 18 refere-se a inquérito policial e a autoridade policial, sendo portanto, inaplicável para a ação penal propriamente dita. Para então respondermos à questão levantada teremos que nos socorrer de outros dispositivos contidos em nossa legislação.
Neste caso, a ação é extinta sem julgamento do mérito por falta de uma condição da ação, tal qual o interesse de agir, conforme exaustivamente explicado. O Código de Processo Penal não tem previsão expressa deste tipo de julgamento o que nos remete a utilização do Código de Processo Civil em analogia e em obediência ao próprio artigo 2º daquele Código.
A carência da ação enseja uma sentença processual que possui uma decisão que não resolve a lide (sentença terminativa), sendo admissível a renovação ou repetição da ação, desde que as partes corrijam o defeito que ensejou aquela extinção.
Isto acontece porque estas decisões são desprovidas dos efeitos da coisa julgada material. Logo, a ação extinta sem julgamento do mérito pode ser reproposta desde que o direito de ação permaneça íntegro e mostre-se novamente exercitável. Assim, corrigida a legitimação ou deduzido o pedido adequado e possível, pode ser ela renovada. Neste caso, de sentença terminativa, a extinção não obsta a que o autor intente novamente a ação, salvo quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou coisa julgada.
Ora, se o direito de ação não está definitivamente eliminado, aquela ação extinta sem julgamento do mérito por falta de interesse de agir que reconheceu a prescrição virtual pode ser novamente intentada a qualquer tempo, desde que presente aquela condição da ação antes afastada.
Além disso, não permitir a utilização da prescrição virtual para extinguir uma ação sem julgamento do mérito é negar existência às próprias condições da ação, o que, data venia, não nos parece plausível e justo.
Deve, sim, a prescrição virtual ou antecipada ser utilizada e prestigiada pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, vez que os argumentos que lhe são contrários não se mostram fortes suficientes para a sua renegação.
Conclui-se, finalmente, que, iniciar, em casos tais, a perseguição penal judicial, ou, se for o caso, dar-lhe prosseguimento, seria o mesmo que nadar, nadar e morrer na praia. Negar-lhe validade e consistência é o mesmo que contemplar a mão-de-obra infrutífera e o trabalho em vão, não havendo motivos fortes que afastem a sua contemplação e existência. Sua aceitação depende da conjugação de institutos de direito material e processual e exige uma visão mais flexível do Direito e de seus operadores.

Asseverar que a prescrição antecipada não é contemplada por nossa legislação é o mesmo que não permitir aos operadores do Direito uma real e verdadeira busca da justiça. Seria o mesmo que afirmar que o promotor, o juiz e o advogado estão engessados pelas normas escritas, retirando-lhes o caráter humano e social a que se presta o Direito.

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