Almir Pazzianotto PintoAdvogado. Foi Ministro de Estado do Trabalho e Presidente do Tribunal Superior do Trabalho
“A democracia é acima de tudo um código moral.”
napoleão bonaparte
Possui nítido viés surrealista o debate em torno da eficácia da Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, conhecida como “Ficha Limpa”.
A Lei Complementar nº 64, sancionada pelo Presidente Fernando Collor em maio de 1990, especificou casos de inelegibilidade. Rapidamente, mostrou-se lacunosa e incapaz de infundir temor entre aqueles que desmoralizavam o Executivo, aprofundavam o lamaçal em que se atolara o Legislativo e desafiavam o Judiciário.
Todo cidadão deveria sentir-se confiante de que ocupantes de cargos públicos, e aspirantes de mandatos populares, seriam titulares de folha corrida imaculada.
A Lei da Ficha Limpa não teve como pai o Presidente da República, membro da Câmara dos Deputados ou do Senado. Nasceu gerada pela obstinação do povo, que não mediu sacrifícios para colher dois milhões de assinaturas, número que ultrapassa em muito o mínimo exigido pelo § 2º do art. 61 da Constituição Federal.
A rigor, lei destinada a moralizar eleições deveria ser desnecessária. Ao fixar as bases da organização do Estado, a Constituição determina, no art. 37, que “a administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Fosse respeitado o princípio da moralidade, não haveria lugar para larápios na vida pública. Repugnantes casos de corrupção, cujo berçário parece localizar-se no Distrito Federal, e de lá se irradiar a 27 Estados, dão provas de que a norma constitucional é ignorada. Desde a Constituição de 1934, fulminada pela Carta de 1937, nada se fez menos confiável do que a lei orgânica da Nação. Reduzida à condição de papel comprometido por juramentos falsos, tem sido alvo de intermináveis violações e remendos, que a transformaram em documento desacreditado aos olhos do povo. O fato de impor o princípio da moralidade como um dos cinco a que devem submeter-se os três Poderes, aparentemente não importa, pois interpretações cabalísticas poderão torná-lo inválido, em nome da presunção de inocência que protege o meliante até que haja sentença condenatória definitiva, passada em julgado.
Quem conhece a proverbial morosidade do Judiciário, sabe ser o trânsito em julgado algo que, como o Espírito Santo, reconhecemos que existe, embora não se consiga ver, sobretudo quando o corrupto condenado é influente e poderoso. Vejam-se o “mensalão”, e outros casos semelhantes caídos no esquecimento.
A aplicação moralizadora da Lei da Ficha Limpa sobrepujou formidável obstáculo ao ser examinada no Tribunal Superior Eleitoral, integrado por três Ministros do Supremo Tribunal Federal, dois Ministros do Superior Tribunal de Justiça e dois Advogados de notável saber jurídico e plena idoneidade. Por seis votos contra um, o TSE deliberou que as regras ali contidas aplicar-se-iam aos candidatos que disputariam as eleições do ano passado. Como consequência, alguns dos vitoriosos viram-se impedidos de tomar posse. Convocado para rever a decisão, o e. Supremo Tribunal Federal inverteu as posições e, por 6 votos contra 5, decretou que, não obstante em vigor, a eficácia real da lei somente será sentida a partir das eleições municipais de 2012.
No entender do Ministro Luiz Fux, autor do voto desempatador, não obstante apoiada no princípio da moralidade, a norma teria ferido o art. 16 da Constituição, segundo o qual “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data da sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.
Com modéstia e respeito, ouso dizer que o egrégio Supremo Tribunal Federal se equivocou. A moralidade é princípio acrônico, atemporal, que independe do tempo, local e data. Deveria ser observado como coisa sagrada, ainda que dele a Constituição expressamente não tratasse.
O art. 16 da Constituição Federal submete-se aos princípios do art. 37, e não o contrário. A Lei nº 9.504/97, Código Eleitoral, prescreve regras de procedimento relativas a datas, coligações, registros, campanhas, arrecadações. Jamais poderia surgir divorciada do princípio superior da moralidade. O fato de, em pleitos anteriores, haverem sido eleitos candidatos imorais e condenados, não significa que gozassem de proteção constitucional, como aparentemente sugere o respeitável julgado da Corte Suprema.
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