Bruno Wurmbauer JuniorAdvogado.
Desde os primórdios da vida em sociedade, o homem compreendeu que certas metas, demasiado grandiosas ou complexas, não poderiam ser alcançadas individualmente. Daí reunirem-se diversas pessoas em grupos organizados, somando esforços em prol do objetivo comum.
A realidade fática não passou despercebida ao Direito. Por isso, à semelhança da pessoa física, formulou-se um conceito para a pessoa jurídica: unidade de pessoas naturais ou de patrimônios visando à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações.
A pessoa jurídica conta com uma gama de direitos, no entanto, sofre limitações ditadas por sua própria natureza, não podendo inserir-se em direitos exclusivos da pessoa natural, pois ser humano não é.
Muito embora criada e controlada por pessoas naturais, a pessoa jurídica é autônoma e distinta da figura de seus dirigentes. No âmbito patrimonial, sobretudo, é esta separação formal que dá liberdade aos sócios para empreenderem, afastando-se da esfera particular os riscos negociais inerentes à atuação empresarial. Em determinadas situações, porém, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica pode ser utilizada, pelos próprios sócios, como escudo à prática de atos abusivos ou danosos, visando lesar terceiros.
A partir do século XIX, tornou-se evidente uma maior preocupação com a utilização da pessoa jurídica para fins diversos daqueles tipicamente estabelecidos pelo legislador, até que surgiu, inicialmente no Direito norte-americano, a “teoria da desconsideração da pessoa jurídica”, também chamada de “disregard doctrine, disregard of legal entity, lifting the corporate veil, piercing the corporate veil”. A doutrina nacional, por sua vez, a denomina de “desestimação da personalidade jurídica”, “descerramento do véu corporativo” ou “teoria de penetração”. Tal teoria permite ao Judiciário, excepcionalmente, “ignorar” no caso concreto a personificação societária, atribuindo condutas e responsabilidades diretamente aos sócios.
Aplicada no sistema do common law a partir do emblemático caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., datado de 1897 – apesar de já haver notícia de decisões desta espécie no início do século XIX –, a teoria do disregard foi introduzida no civil law pelo Professor alemão Rolf Serick, que, em 1958, elaborou o conceito da “durchgriff der juristischen personen”, visando sistematizá-la sem os casuísmos dos julgados norte-americanos.
Serick proclamava que o princípio da autonomia da pessoa jurídica pode ser relativizado e está sujeito à derrogação, em determinadas situações. Todavia, o doutrinador não propunha a aniquilação da pessoa jurídica, mas sim que a teoria da penetração fosse vista como um mecanismo jurídico criado para protegê-la contra abusos de direito ou fraudes. A formulação do jurista germânico ficou conhecida como a “teoria clássica, ou maior, da desconsideração da pessoa jurídica”.
No Brasil, Rubens Requião foi quem primeiro tratou do instituto, em pioneira conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, em 1969. A ideia acabou sendo abraçada pela doutrina nacional e, também, pela jurisprudência.
No plano legislativo, porém, o assunto somente foi introduzido no ordenamento pátrio pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.079/90, art. 28), que inovou ao adotar a “teoria menor”, autorizando a desconsideração não apenas nos casos de abuso de direito ou fraude, mas também diante do mero risco de que a pessoa jurídica venha a se tornar óbice à reparação dos danos causados (falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, provocados por má administração). A teoria menor da desconsideração também foi acolhida pela Lei de Infrações contra a Ordem Econômica (nº 8.884/94) e de Proteção ao Meio Ambiente (nº 9.605/98).
Já o Código Civil acatou tão somente a teoria clássica – maior – da desconsideração da personalidade jurídica. O art. 50 do Estatuto Civilista menciona expressamente “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial”, como condições para que os efeitos das obrigações possam ser estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Restam, portanto, afastados os pressupostos da dita teoria menor nas relações civilistas tradicionais.
O momento atual afigura-se oportuno à discussão envolvendo a disciplina da desconsideração da pessoa jurídica em sede processual, cumprindo, ab initio, parabenizar o legislador pela salutar iniciativa, já que de interesse geral que a teoria seja aplicada segundo regras mínimas, porém com amplo respeito ao contraditório e ao devido processo legal.
Com efeito, o legislador reservou um capítulo do novo CPC à disciplina do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, no título que trata das partes e seus procuradores. O art. 77 define que, “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico”.
Constata-se, neste ponto, que o texto do Código Civil foi praticamente repetido no Substitutivo aprovado pelo Senado Federal, relatado pelo Senador Walter Pereira, que apenas acrescentou a possibilidade de ser estendida a desestimação para bens de outra empresa que pertença ao mesmo grupo econômico da pessoa jurídica desconsiderada. Isto é apropriado frente à dinâmica empresarial atual, em que pessoas jurídicas controlam e são controladas por outras.
Curioso que o projeto de lei, ora submetido à apreciação da Câmara dos Deputados (PL nº 8.046/10), deixou de lado a teoria menor da desconsideração, que prescinde do elemento subjetivo, mencionando apenas que “o incidente da desconsideração da personalidade jurídica pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio”.
O silêncio do legislador poderá, contudo, causar polêmica. De fato, como o operador do direito deverá se portar nos casos em que a desconsideração é aplicável, sem que se verifique a comprovação de fraude ou abuso de direito?
Impõe-se, portanto, a modificação do projeto neste ponto, antes de sua conversão em lei, sob pena de a jurisprudência ter de pronunciar-se a respeito no futuro, talvez optando pela aplicação analógica do incidente também para a teoria menor. Melhor, então, que se esclareça o assunto desde logo.
Noutro ponto, o projeto de novo CPC prevê que o incidente “é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e, também, na execução fundada em título executivo extrajudicial”. A redação proposta pelo Relator do Substitutivo, como se vê, não contempla o emprego do incidente em caráter antecedente ao processo.
Ora, apesar de a desconsideração ser medida excepcional, vale lembrar que a teoria tem raízes no combate à má utilização da pessoa jurídica mediante fraude, abuso de direito ou mesmo como forma de, simplesmente, impedir o ressarcimento pelos danos causados, em especial ao consumidor e ao meio ambiente. Neste particular, para se assegurar a efetividade de futura demanda judicial, oportuno e recomendável seria autorizar-se o uso prévio do incidente como medida cautelar ou, na nova terminologia empregada pelos mentores do projeto de novo Código de Processo Civil, em sede das tutelas de urgência ou de evidência.
O art. 78 do Substitutivo estatui que, “requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão citados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis”. A redação original foi alterada, substituindo-se o termo “intimação” por “citação”. Por certo, houve uma grande preocupação com a gravidade da medida e seus efeitos. Sendo a citação o ato mais formal do processo, garante-se maior rigorismo possível ao incidente, impossibilitando a penetração no patrimônio sem o conhecimento prévio e formal por parte de administradores e sócios interessados.
Apesar de ser válida tal preocupação, parece que a redação anterior está mais alinhada com os preceitos que orientam o moderno Direito Processual, em que os formalismos tendem a ser afastados em detrimento da efetividade. A exigência da citação em incidente originalmente concebido para coibir condutas fraudulentas ou abusivas permite entrever, com base na experiência, a existência de uma brecha capaz de impedir o desenvolvimento célere do próprio incidente, ou mesmo inviabilizá-lo. Não se pode olvidar que a exigência da citação no processo de execução foi uma das principais causas que levaram o legislador a decretar o sincretismo entre o processo de conhecimento e o de execução.
In fine, o art. 79 do Substitutivo estabelece que “concluída a instrução, se necessário, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento”, o que parece estar em consonância com a proposta de novo Código de Processo Civil.
Pela importância do tema, e em conclusão, cabem reiterados elogios ao legislador pela inclusão da teoria da desconsideração da pessoa jurídica no projeto de lei ora em trâmite na Câmara dos Deputados. Visando fomentar o debate, trazemos elementos que podem, quiçá, contribuir para tornar mais efetiva a disciplina do instituto no que toca à sua aplicação ao caso concreto.
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